segunda-feira, 29 de novembro de 2010

A guerra que já foi vencida


Se a violência pode ser justificada é na iminência de uma tragédia maior de outro modo inevitável. Sobre essa base a guerra busca a sua razão de ser, no seu ideal de futuro, que distrai a visão de um presente assustador. Porém a mesma lógica que garante ao assassino o perdão pode demonstrar que uma ação violenta produz, por natureza, novas sementes de violência.

Nos combates do Rio de Janeiro falta base a esse futuro idealizado e redentor, capaz de fazer valer a pena as conseqüências, pelo fato de o inimigo não existir como indivíduo, mas sim também como efeito. Então seria irrelevante, não fosse trágico, quantos são presos ou mortos antes que se elimine a causa, o motivo primeiro que dá corpo ao problema: o tráfico de drogas.

Essa imaterialidade do inimigo ultrapassa os limites da favela e ignora o combate aos corpos, que com facilidade são substituídos. Faz de tudo uma farsa, encenada pela polícia, com o aval dos governos e da sociedade. Todo combate se mostra em vão. Todo dinheiro gasto, todo o tempo e tantas vidas. O tráfico jamais pode ser vencido por um motivo óbvio demais para ser negado: as pessoas continuarão usando drogas.

Talvez ainda seja difícil demais pra alguns acreditar nisso, porém sempre haverá drogas. De todos os tipos que se possa imaginar. Absolutamente independente do que quer a lei ou mesmo a maioria. Ingênuo é pensar que um dia pode ser anunciada a queima do último pé de maconha do mundo e que já não há ninguém disposto a buscar novas sementes. Acabar com o poder do narcotráfico no Complexo do Alemão, na Rocinha, ou onde quer que seja, na verdade nada mais é que transferir esse poder paralelo para outro lugar. Um poder desestruturado, mas que se não for extinto a partir de suas causas, se estabilizará novamente.


O Rio vive hoje o caos da ausência de uma luz legítima no fim túnel. A população assustada se entorpece na ilusão e aplaude o mágico no final de cada cena. Um espetáculo dessa vez grandioso, com tanques de guerra, helicópteros blindados e muitos mortos. Ainda assim um espetáculo vazio, encenado por mascates de falsas esperanças. A solução para a violência não pode estar em recuperar territórios dominados, dizimar quadrilhas e apreender drogas e armas, uma vez que tudo pode ser substituído, mas a anestesia é vendida como cura, como um remédio amargo e milagroso, administrado somente agora porque o governo atual é melhor que o anterior.

Aceitando a lógica de que as drogas continuarão sempre a ser vendidas, a perseguição aos traficantes revela sua face absurda. Todas as mortes decorrentes desse equívoco apenas contribuem para que a legalização se estabeleça como uma causa humanitária. Uma causa motivada pela compaixão e cujo efeito imediato seria a quebra do círculo de repressão inútil, violência e ilusão que a tantos causa sofrimento.

Se a situação no Rio de Janeiro fugiu de controle se deve ao fato de que há muito tempo o dinheiro relacionado às drogas é investido em armas. Uma defesa contra a polícia e contra facções rivais na disputa por uma fatia maior de um mercado sem lei. E ainda que esse armamento seja todo destruído, o dinheiro das drogas permanecerá nas mãos de quem o estado combate, fazendo o círculo girar mais uma vez.
Enquanto a hipocrisia não for vencida, enquanto a chacina de traficantes nas favelas for comemorada na zona sul em festas regadas a maconha e cocaína, o efeito anestésico da repressão se perderá sem que a doença em si seja tratada. O tráfico encontrará novos caminhos à margem da lei, sempre que lhe for imposto obstáculos impermanentes. E por maior que seja o benefício das Unidades de Polícia Pacificadora, entre os principais resultados práticos da implantação e manutenção do modelo em todas as favelas em que existe tráfico, estaria a falência do país.

A invasão a alguns destes territórios parece mais uma questão de orgulho. Algo para esconder uma derrota que não se quer admitir. O deboche manifesto, transmitido ao vivo, torna-se então intolerável. Soa também como um pedido. Para que os traficantes sofistiquem seus métodos, não desafiem o poder oficial, conquistem seu espaço com mais diplomacia. Nada de invadir favela rival dando tiro. Façam seus líderes dialogar, respeitem a concorrência e se escondam às vezes, quando aparecer um policial honesto. No mais, sigam tranqüilos. A guerra na verdade já foi decidida e as drogas venceram. Seu lugar na Terra está garantido na vontade de um número mais que suficiente de nós, seres humanos, usuários ou comerciantes. A legalização é apenas uma formalidade necessária, o acordo de paz que oficializa a derrota.

domingo, 4 de julho de 2010

(conto) Carta aos que chegaram do passado

Sempre fui fascinado por suas civilizações. Fascinado talvez não seja a palavra mais adequada, já que o sentimento que elas me despertam é a mais profunda e sincera aversão. Todavia o motivo desta minha carta não é dizer o que eu penso, e sim ajudá-los, o que de certa forma não deixa de ser irônico. Há tempo reparo na dificuldade que muitos encontram para se adaptar a esse mundo, totalmente novo para vocês. E desde que passamos a reviver pessoas de épocas remotas, como no famoso caso dos alpinistas do topo do Himalaia, o que tenho notado é uma falta de consideração tremenda de nossa parte. Nossa concepção de história, por ser baseada em centenas de milênios, não se preocupou em preservar em detalhes a memória de sociedades primitivas, em que pessoas como vocês viveram. E trazê-los de volta a vida dessa maneira, sem responder a questões básicas de sua época, não me parece justo. Por isso pesquisei em tudo o que me foi possível ter acesso sobre o passado distante e escrevi isso que a partir de agora divido com quem se interessar. Tentei ao mesmo tempo explicar o início da era atual, inclusive através de trechos de outros documentos, que acabaram por se perder entre os séculos. Espero lhes ser de alguma valia, ainda que deixe muitas questões sem resposta. Encarem essa carta apenas como uma introdução ao nosso mundo - que agora também é o de vocês – e preparem-se para desvendá-lo sem pressa. Comecemos então pelo final da era que muitos dos que chegaram do passado chamavam de contemporânea.

O estudante de Biofísica Frederico Saliner talvez seja a primeira pessoa a quem eu deva apresentá-los para que possam entender como o mundo em que vocês viviam deixou de existir. Em meados do século XXI do antigo calendário cristão, ele foi pioneiro ao realizar com sucesso o experimento que literalmente dividiu a história e marcou o ponto zero de onde décadas depois, com a criação do novo calendário, a primeira era seguinte a de vocês teve início.

A experiência trouxe de volta à vida um herdeiro extraordinariamente rico, de dez anos, que morrera atropelado. A família do garoto, desesperada com a tragédia, congelou o corpo recém-falecido e passou a procurar no submundo científico toda sorte de procedimento que lhe prometesse uma esperança. Os corpos indigentes utilizados por Saliner e por centenas de outros cientistas nas pesquisas foram esquecidos pela história e o garoto foi considerado pela ciência o primeiro ser humano a ressuscitar.

A notícia surgiu no início como boato, que meses depois foi confirmado e comprovado por Saliner. Em um pronunciamento assistido por bilhões de pessoas, ele explicou por alto as dificuldades do processo e as técnicas utilizadas para a realização da façanha. Lembrou que cada caso seria um desafio, mas que o futuro não deixara por isso de ser promissor, uma vez descoberta a forma de reconstruir o cérebro e trazê-lo de volta à atividade sem sequelas. Explicou também os motivos pelos quais a notícia não foi imediatamente divulgada, que basicamente orbitavam o mesmo ponto: os imprevisíveis e drásticos resultados da descoberta. Já armado para enfrentar as conseqüências e lucrar o máximo possível, o cientista concedeu a primeira entrevista coletiva, ao lado do garoto. .
- Podemos ser imortais? – foi a primeira pergunta.
- É provável que sim. E que no futuro a única maneira de um ser humano morrer seja destruindo completamente o seu cérebro, e com isso suas memórias, conhecimentos e experiências. É isso que faz dele um ser único e reconhecido como tal. Todo o restante, coração, estômago, pulmões, pele, rosto, assim como já está sendo feito, poderá sempre ser consertado ou substituído. Reconstruir as conexões destruídas no cérebro, pelo tempo, perda de oxigenação ou qualquer outro processo, resultante ou não em morte cerebral, pode ser o caminho para a vida eterna.

Saliner não chegou a viver o suficiente para ver realizada sua profecia. Apesar de ter ressuscitado várias vezes, a medicina nessa época ainda não havia avançado a ponto de conseguir manter infinitamente o corpo inteiro funcionado. Nenhum contemporâneo de vocês sobreviveu por mais de 150 anos. .
A pergunta seguinte foi para o garoto e talvez tenha sido ainda mais interessante.
- O que você viu durante o período em que esteve morto? – indagou o jornalista, sem os eufemismos cabíveis frente a uma criança.
- Não vi nada.
Não consigo imaginar alguma outra frase na história que tenha causado tamanho impacto. Nos meses seguintes, enquanto a discussão sobre o que ocorrera no laboratório de Saliner ainda era o assunto mais discutido em todo o mundo e outros procedimentos semelhantes ao do garoto já haviam sido realizados com o mesmo sucesso, tentou-se justificar o fato dessas pessoas não se lembrarem de nada após a morte, com um raciocínio similar ao da reencarnação, e do esquecimento das vidas passadas. Ou então dizendo que o espírito é completamente independente do cérebro. Mesmo assim as instituições que vocês chamavam de igrejas sentiram-se ameaçadas, uma vez vislumbrada a hipótese de a morte não mais ser temida. Adotaram então uma postura ferozmente contrária à nova técnica e o tom de ameaça adquiriu requintes macabros nos cenários descritos pelos líderes religiosos como o destino daqueles que desafiassem a hora escolhida por Deus para desencarnar. O slogan “Morte é vida”, ganhou fama após ser tema de uma campanha mundial patrocinada pela igreja católica, que conseguiu com isso manter por algum tempo parte do seu poder e diminuir a angústia dos mais pobres, impossibilitados de arcar com as despesas de ressuscitar. Já em cultos evangélicos, pastores afirmavam ter conversado diretamente com Deus sobre os acontecimentos e a mensagem era clara: Saliner é o demônio!

O discurso começou a mudar assim que alguns desses líderes caíram enfermos. J.J Souza, o super missionário da Igreja Universal da Graça do Senhor Jesus Cristo Todo Poderoso, foi o primeiro dos grandes a se submeter ao tratamento de Saliner. A princípio tentou de todas as maneiras manter o sigilo sobre a sua ressurreição, mas na segunda morte acabou descoberto. Passou a adotar o discurso de que se Saliner conseguiu o que conseguiu foi porque Deus deixou. E que o próprio Deus lhe disse pessoalmente durante o período em que esteve morto “vai, ressuscita e termina a tua obra”. Não teve como negar o pedido, mas informou aos fiéis que a morte continuava sendo o único caminho para o paraíso ao lado de Jesus e que apenas ressuscitou para cumprir a missão, a ele outorgada por Deus, de elevar a fé do povo ao máximo nesses tempos apocalípticos. Já o Papa seguiu postura contrária após se submeter ao processo. Convocou a imprensa para a Praça de São Pedro no Vaticano e lá anunciou a renúncia ao cargo. Justificou a atitude assumindo a culpa de não ter certeza da existência Deus, que ao morrer não viu nada do outro lado e que nem ao menos sabe se realmente existe algo a ser visto. Por essas dúvidas abraçava agora a ciência de Saliner. Dias depois se mudou para Ibiza.

A renúncia do Papa foi o estopim para a ruína de todo o pensamento teológico ocidental. Por alguns anos ainda procurou manter-se as massas ligadas à fé. Buscava-se com isso evitar a anarquia generalizada que poderia ter início caso as amarras morais impostas no cabresto das religiões, os pecados e o medo do inferno, evaporassem todos ao mesmo tempo e em espíritos pouco habituados à liberdade. Mas o tempo se encarregou de enterrar de vez o Cristianismo e todas as outras religiões de sociedades civilizadas. Após alguns séculos, a profecia de Saliner se cumpriu. A ciência se desenvolveu como nunca, com os grandes gênios trabalhando em suas obras por um período muito maior, e a cura de todas as doenças não tardou a chegar. Já era possível viver para sempre. O esboço do que viria a ser o novo mundo estava traçado.

No início, anarquia, revolta e violência cresceram em um assustador exponencial, mas que nos anos seguintes puderam ser domados através de um acesso muito mais barato à ressurreição e a uma reforma nos sistemas judiciário e penal. Termos como homicídio tiveram que ser revistos e novas penas impostas. Ocultação de cadáver, por exemplo, passou a ser punido com prisão perpétua, sem possibilidade de ressurreição, em casos em que a ocultação do corpo resultou na impossibilidade do processo de retorno à vida da vítima. Mesma pena aplicada para todas as outras ocorrências em que o cérebro foi perdido, como incêndios criminosos, bombas e tiros de grosso calibre na cabeça. As medidas refletiram em uma drástica redução do número de “homicídios consumados”, termo criado para designar os episódios em que não foi possível a ressurreição. Por outro lado, os “homicídios reversíveis” cresceram bastante, e as penas passaram a ser calculadas de acordo com a complexidade do processo necessário para a reversão do quadro. Se o número desses homicídios nunca voltou aos padrões anteriores à era das ressurreições, também não comprometeu em nada o futuro, que se desenhava cada vez mais grandioso.

O número reduzido de mortes, em alguns séculos nos obrigou a adotar um controle rigoroso de natalidade. A permissão para nascer passou a custar uma fortuna e estava diretamente ligada ao número de óbitos registrados no ano anterior. Muitos economizaram durante vários séculos para ter um filho, já que burlar a lei era praticamente impossível. Mulheres grávidas precisavam de um atestado que comprovasse a compra da licença, sob pena de serem obrigadas a abortar. Fora isso as maternidades, pediatrias, creches, escolas e todos os produtos que em outras épocas tinham como alvo as crianças passaram a ter uma nova organização calculada em função do número de permissões. Tudo personalizado. Ter um filho às escondidas, além de crime, era condenar a criança a uma vida à margem da sociedade. Mas com a evolução da medicina reprodutiva, já não era preciso ter pressa, e em geral as mulheres deixavam para engravidar depois dos quinhentos anos. O que revolucionou completamente também as estruturas familiares. A imensa maioria dos casamentos feitos ainda na época em que a frase “até que a morte os separe” possuía sentido, não resistiu nem por um século. Os que se mantém juntos até hoje, desde o início da nova era, ainda servem de inspiração aos poetas, mas não passam de algumas centenas espalhados pelo mundo. Se antes as uniões que sobreviveram à juventude e à maturidade, dificilmente terminavam na velhice, hoje, por não existir mais essa velhice como na era passada, o desafio de permanecer junto tornou-se infinito.

Outro aspecto interessante da sociedade de vocês, que se opõe em definição a essa idéia romântica do amor e que contribuiu no início para o controle de natalidade, diz respeito às guerras. O fim da última que se tem notícia ocorreu há alguns milênios, no local onde vocês acreditavam que Jesus teria ressuscitado, e que depois eu soube representar também a terra santa de outras seitas. Acredita-se que esse termo “guerra” utilizado atualmente para dar ênfase à referência de uma discussão ou deixar claro uma antipatia mútua, em algumas sociedades primitivas significava muitas vezes se oferecer em sacrifício por uma forma de agrupamento, chamada por vocês de país, ou por uma religião. Especula-se inclusive sobre a existência dos chamados homens-bomba. Pessoas que amarravam explosivos ao corpo e detonavam a si próprios e ao máximo possível de semelhantes. Há quem duvide, mas eu acredito. Visto que esse mundo para vocês era considerado apenas uma ponte entre algo não muito bem definido e ou céu ou o inferno. Destruir a ponte, garantindo um lugar do lado escolhido, não parece nada irracional. De certa maneira vocês mesmos podem ser considerados também uma ponte. A que nos separa dos animais.

Gostaria de deixar claro que apesar de avaliar a forma como vocês viviam, inclusive pior que a dos animais, que ao menos aproveitavam ao máximo seus instintos, e também de ter afirmado no início sentir nojo de suas sociedades, de maneira alguma deposito sobre vocês a culpa por suas mazelas. O que vocês chamavam de “condição humana” deveria mesmo ser algo terrível. Tão terrível, que poucos eram capazes de lidar com ela, abrindo mão de confortos como a crença em além-mundos. Em nossa sociedade atual, talvez o número de espíritos pouco iluminados permaneça o mesmo. Porém é evidente que criados em um mundo mais salutar, que se nem de longe é perfeito, mais distante ainda está do conhecido por vocês, mesmo os cérebros menos brilhantes puderam alcançar um nível razoável de existência. Se não dominam técnicas avançadas de meditação, nem são capazes de elevar-se às dimensões físicas do corpo, ao menos encontram satisfação em prazeres vulgares. Prazeres que vocês condenavam ou reprimiam nessa recusa aos instintos, e acabaram assim por erguer alto demais, sobre si próprios, um peso que se tornou insustentável. Esse peso vocês chamavam de vida. O que restava era esperar a morte. E mesmo assim temê-la. Mas não vou mais me alongar em pormenores. Acredito já ter explicado com alguma clareza o quanto esse mundo é diferente do que vocês conheceram. O restante deve ser visto e vivido por vocês mesmos, e nenhuma definição encontraria melhor caminho que a experiência. Espero com sinceridade que de alguma forma o que eu escrevi ajude os recém-chegados a encontrar esse caminho e a desfazer as amarras que ainda os prendem ao passado. De todos os valores cultivados por vocês e também ainda por nós, talvez a solidariedade e a empatia, que serviram de base para essa carta, sejam os mais obscuros. Não sei realmente porque eu quis escrever isso. Talvez seja egoísmo e vontade de que mais um pedaço de mim ainda permaneça nesse mundo, que por tantos e tantos anos eu amei.
Atenciosamente,
David Saliner.

A sala de visitas parecia ainda mais vazia do que o de costume e David teve toda a paz necessária para realizar o último trabalho. Pegou a corda com firmeza e atou dois nós para prender junto à cabeça alguns quilos de explosivos. Tirou do bolso o fósforo e coloriu a sala de vermelho. Nas ruas do centro da metrópole o barulho da detonação não chegou a ser ouvido por humanos. Apenas os pássaros que se empoleiravam nas amendoeiras, precipitaram um voo assustado rumo a uma pousada mais distante. É domingo e poucos homens transitam pelos arredores cinzentos e de atmosfera hostil, peculiares aos grandes centros em dias como esses. Na maioria mendigos, que há algum tempo já são incapazes de ouvir e que aos finais de semana se arrastam pelas sombras dos arranha-céus.

sábado, 12 de junho de 2010

(conto) Jeremias sabe a verdade

A realidade apresenta histórias que de tão extraordinárias a assimilação desses fatos como reais exige algum esforço. Essa aconteceu em Vargem Grande, um bairro tranquilo da zona oeste do Rio de Janeiro, que apesar de parte da metrópole mantém ainda um certo ar de interior. Senhora Anita foi encontrada morta dentro de casa com um tiro na cabeça e suas duas netas desapareceram. Nenhum vizinho ouviu o disparo ou foi capaz de fornecer qualquer informação à polícia, que revirou toda a residência à procura de vestígios. As únicas pistas encontradas e que chocaram os investigadores haviam sido deixadas pelo próprio autor do crime: uma carta obscura escrita à mão e um pen-drive.

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Ao senhor investigador,

Jeremias enxerga toda a sombria escuridão da madrugada e nada pode falar. Ele brilha com a lua e com os faróis solitários das motocicletas, mas não conta a verdade. A vizinhança já viu Jeremias pela rua, apesar de não reconhecê-lo. Senhora Anita passa por ele com o saco de lixo todo o final de tarde e Jeremias espera ela sair para entrar na casa numa terça-feira. É quando duas lindas meninas costumam visitar a vovózinha. Às vezes ficam para o jantar, às vezes apenas pegam algum dinheiro e partem em seguida. Bruna e Camila, gêmeas idênticas na exuberância do final de adolescência. Eu me masturbo pensando em nós três.

Na casa do final da rua o farmacêutico Ezequial recebe rapazes quando a esposa não está. Ela foi internada porque levou uma facada na prótese de silicone e há duas semanas que o marido transa todos os dias. Jeremias presenciou algumas indecências, mas hoje ele está na sala da senhora Anita, onde Bruna assiste ao jornal à espera da irmã no banho. A voz feminina que sai da televisão informa que o laranja está na moda. A modelo tropeça, mas eu não sinto pena. Jeremias passa atrás do sofá enquanto a garota dá risada da modelo. É o barulho do chuveiro que chama a sua atenção e ele caminha até a suíte. Decide deitar na cama, sobre algumas roupas que parecem ser da senhora Anita. Jeremias cheira todas as peças. A calcinha ele chega a rasgar um pouco com os dentes. A pureza e os modos de Jeremias me comovem.

Senhora Anita volta para casa devagarzinho. Não caminha muito bem, mas aos setenta anos, ainda trepa de vez em quando. Já ficou viúva duas vezes e agora anda de namoro com um cretino que eu conheço. Senhor Apolônio, meu professor de História na época da escola. Eu só lembro que ele dá aula olhando pro teto, a turma ri da sua cara de imbecil e ele desconta sua frustração em sermões de auto-ajuda. Nunca casou nem teve filhos. Publicou dois livros que ninguém leu e agora namora senhora Anita. Difícil saber como ainda não enfiou uma bala na cabeça.

- Tua irmã ainda tá se arrumando? Camila!Camila! Vou lá falar com ela!

Senhora Anita se arrasta até o quarto enquanto Jeremias pula para debaixo da cama. Sem estranhar a bagunça, a avó chama novamente por Camila.

- Tá tudo bem vózinha, já to saindo, eu sei que a água não é de graça! – responde a jovem com alguma doçura fingida. Sua vagina parece ainda mais doce. Senhora Anita sai do quarto e Jeremias continua debaixo da cama. A porta do banheiro é aberta para que o vapor não embace o espelho. Camila está nua e seca o cabelo sob o olhar atento do visitante. Ela se aproxima da cama cantando algum lixo popular adolescente e não percebe o som da respiração pesada de Jeremias. Vê a calcinha da avó e sente nojo enquanto o celular toca escondido em algum lugar outra melodia insuportável. Jeremias gosta de Jazz e música clássica. Eu lembro disso e antecipo Moonlight Sonata no iTunes.“I gotta feelin, that tonight´s gonna be a good night”, repete o aparelho celular. Dou risada imaginando o quanto ele pode estar enganado! Camila identifica de onde vem o som e se senta no colchão próxima à cabeceira. Ela inclina levemente o tronco para frente, mas a gravidade pouco pode fazer com aquele belo par de tetas firmes. Com o braço esquerdo alcança o aparelho caído no chão. Jeremias leva um susto, porém se mantém parado. A garota vê quem está ligando e prefere não atender. “I got a feeling..”, insiste o contato. Ela não desliga e a música se repete várias vezes. Talvez essa noite venha mesmo a ser uma boa noite. O tédio me consome e a curiosidade me leva à casa da senhora Anita.

-Boa noite, meu carro estragou e eu dei um azar danado de logo hoje ter esquecido o celular. Eu poderia usar o seu telefone, por favor?

A desculpa era clichê, mas eu uso um belo terno e dirijo um carro do ano. Senhora Anita me deixa entrar. Olho para Bruna deitada no sofá e fico excitado enquanto a velha me fala sobre as ameaças da cidade.

- Realmente é muito perigoso! – concordo com sinceridade.

- Alô, eu gostaria de chamar um guincho, meu carro estragou, mas eu não sei nem exatamente onde eu estou. Um minuto, por favor! - converso com o “tuuuuu” do telefone antes de perguntar à senhora Anita onde nós estamos. Repito as coordenadas. Agradeço com toda a educação ao “tuuuuu” e em seguida à vovózinha. Despeço-me e digo que vou aguardar no carro.

Senhora Anita me convida para uma xícara de café. Talvez ela queira transar e ache que eu seja capaz de fazer isso com ela. Eu aceito e espero por Jeremias.Sento no sofá de dois lugares que faz jogo com o de três onde Bruna está deitada. Desse ângulo desejo ainda mais abrir as suas pernas. Camila se materializa na sala sem que eu perceba a aproximação. Cumprimento-a com um “boa noite” e um sorriso amigável que ela retribui por polidez. Não se interessou por mim, pra ela eu sou um tio velho e feio. Talvez mesmo se soubesse das jóias, roupas e viagens que eu poderia lhe comprar, suas atenções não fossem maiores. Mas eu cansei dessas incertezas ou preliminares. E-bay, telefone e pronta-entrega também já me aborrecem. O que eu faço agora é o que me diverte por mais tempo. Talvez me faça esquecer.

Bruna prefere não sentar ao meu lado e puxa uma cadeira para colocar o sapato. Senhora Anita se aproxima trazendo o cafezinho e as netas dizem que já estão indo embora. Jogo a xícara na parede, saco uma arma e peço por favor que elas não gritem. Elas me obedecem. Jeremias vem correndo até a sala e eu vejo no olhar das mulheres o horror que a situação lhes causa. Senhora Anita recebe um tiro na cabeça assim que abre a boca pra implorar pela vida das netas. Deve pensar que me comove com altruísmo. As gêmeas gritam e é esse o sinal para que outros dois empregados saiam do carro em meu auxílio. Se a senhora Anita não estivesse morta eu lhe diria que seu último desejo foi cumprido e que belas escravas me interessam mais do que cadáveres.

No pen-drive que servia de peso para essa carta vocês podem conferir parte do trabalho de Jeremias. Meu amigo felino passou algumas semanas nessa rua, perambulando pelas sombras com uma microcâmera presa à coleira. Ah, a tecnologia e a ciência! Não esperava que fosse dar tão certo, mas Jeremias levou apenas alguns chutes ao ser descoberto onde não devia. No mais presenciou orgias, fofocas, lindas garotas nuas e muita sordidez. Ainda assim não parece me julgar pelo que viu. Faz ron ron quando eu chego e espera por mais bacon.
Att.
Um grande mentiroso.

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As imagens do pen-drive mostram somente um homem de capuz estuprando as duas gêmeas, amarradas e amordaçadas na cama da senhora Anita. Passados dois anos, ainda não se teve nenhuma notícia sobre o paradeiro das garotas. Quase todas as informações da carta foram confirmadas pela polícia, mas Apolônio nunca foi professor de História. Jeremias ninguém nunca soube se existiu.

quarta-feira, 9 de junho de 2010

(conto) Sexo no supermercado

Ela escolhia as maçãs enquanto eu me apaixonava. Quando levantou os olhos, lá estava eu. Não foi coincidência. Eu ainda olhava para baixo, para algum cesto de algo que eu não compraria, mas fingia me importar. Do outro lado do cesto ela me observava e sorria. Eu sabia disso mesmo sem vê-la, o porquê eu não sei. “Ana!”, gritou uma mulher que passava por nós com o carrinho cheio de compras e assim eu descobri o seu nome.
Passei a fitar diretamente as duas. Ana abraçou a amiga e me pareceu a mais doce das criaturas. Conversaram algumas futilidades que eu não me recordo. Talvez não tenha ouvido, talvez os peitos de Ana tenham me deixado surdo e insensível e agora eu fosse apenas olhos. Olhos que só viam os peitos épicos de Ana.
Ana se despediu da amiga e caminhou em direção ao corredor onde fica a geladeira. Eu fingi vontade de tomar um iogurte. Seus peitos continuavam lindos, mas eu já observava com mais calma todo o resto. Suas coxas também eram grandes e sua bunda magnífica. Ela era maior do que eu, um mulherão mesmo. Vestia uma mini-saia jeans e uma blusa branca decotada. Aproximei-me e falei “com licença”. Ela olhou pra mim, sorriu - exatamente como eu havia imaginado que fosse seu sorriso - e me deixou passar. Agora eu fingia me interessar pelos queijos.
Não tive coragem de puxar assunto. Pensei em perguntar as horas, mas eu usava um relógio grande que ela já podia ter visto. Também achei a pergunta um tanto besta. Precisava dizer algo engraçado, ou então que ela derrubasse a prateleira de presunto para que eu lhe mostrasse o quanto sou solidário. “Ah muito obrigada, você é muito gentil”, ela diria enquanto eu recolho do chão toda a comida. “E você desastrada”. Nós dois daríamos risada. Depois trocaríamos outro olhar e eu seria simpático.
Ana, porém, não derrubou nenhuma prateleira. Quando caminhou para o caixa, eu senti meu coração apertado. Corri atrás dela e gritei o seu nome um tanto mais alto que o necessário para que ela me escutasse. Ana se virou assustada e me viu parado no meio do corredor com um pacote de queijo em uma mão e um guarda-chuva na outra.
- Você esqueceu no corrimão! – disse lhe mostrando o guarda-chuva.
- Ai, eu vivo esquecendo! Mas pera ai, como você sabe o meu nome?
- Ouvi uma amiga sua falando.
-Ah sim! Muito obrigada, você é muito gentil! – foram as suas palavras, que soaram como um deja vu. Ana se aproximou, pegou o guarda-chuva sorrindo, agradeceu mais uma vez e foi embora. Eu ainda fiquei um tempo ali parado, perdido no balançar das coxas que afastavam Ana para sempre de mim. Alheio a todos e ao mundo, refletia em solidão: imaginava Ana nua e nós dois em uma cama grande. Uma história de amor e muito sexo. Foi quando eu ouvi uma voz familiar que bruscamente desapareceu com os meus sonhos.

-Filho duma puta, onde é que tu andava moleque? A mãe tá te procurando há mais de meia hora. Já era pra nós tá no morro! O Nem tá me esperando pra entregar o bagulho. Se ele tiver ralado eu vo vender a porra do teu Play. Pirralho filho duma puta!


Meu irmão puxou o meu braço, arrastando-me até a minha mãe, que me deu algumas palmadas. Por sorte Ana já havia ido embora ou eu morreria de vergonha.

segunda-feira, 7 de junho de 2010

Gorete: a cinderela trash do Pânico na TV



Gorete foi o nome mais comentado pelos brasileiros no Twitter e tirou da Globo o primeiro lugar no Ibope. Sucesso estrondoso com uma fórmula que parece nunca perder o encanto. Na insólita versão do Pânico na TV para o conto da Cinderela, Sabrina Sato assume o papel da Fada Madrinha - tendo a mídia como varinha mágica - e realiza os sonhos da protagonista. Para os Irmãos Grimm, à meia noite a carruagem vira abóbora. Gorete ainda deve posar pelada.

A nova Cinderela desfilou em um evento de moda em São Paulo sorrindo bastante agora que tinha dentes e balançando o longo aplique capilar de 3.800 reais. O vestido da versão clássica do conto era feito de retalhos, mas em uma releitura contemporânea, nada mais coerente do que servir para merchandising de alguma grife. O contraste entre a Gorete de hoje e a antes conhecida como Paula Veludo, cujas participações no Pânico variavam de papéis de bruxa a vampira, é que precisava chocar, numa época em que fórmulas como essa já foram quase esgotadas. Conseguiu. A plateia entusiasmada grita o nome de Gorete. O desfile é seu baile encantado; a glória, o seu príncipe.

Antes do evento, a mulher feia que demorou quase meia hora para conseguir ajuda para trocar um pneu, agora transformada - se não em Gisele Bündchen como queria, ao menos um tanto mais jeitosa – espera apenas poucos segundos até um jovem rapaz se dispor a fazer o serviço. Na história de Gorete, ao empurrãozinho na capacidade de despertar desejo sexual ou simpatia, soma-se a espécie de mutação que a fez se tornar o foco do interesse da massa. O conto do vestido rosa e as pernas de fora de Geisy Arruda já se perdia de vista antes do final feliz - talvez ligado a alguma das produtoras de filmes pornôs que mostraram interesse em um contrato - e Gorete teve seu caminho facilitado. O Pânico e a mídia também participaram da transformação de Geyse, mas nesse caso os chamados bons costumes e um senso de moralidade medieval é que por ainda terem força suficiente para dividir opiniões, fizeram as vezes de fada-madrinha.

Histórias como a das duas e de quaisquer outras cinderelas não remetem a um espaço ou tempo determinado. Sua origem é desconhecida, encontrando-se registros sem relação alguma entre milhares de anos. Kant, na Crítica da Razão Pura, apresenta a base para a compreensão do que é inato ao homem, do que tem como alicerce algo a priori, independente de qualquer experiência obtida através dos sentidos. Trata-se entre outras coisas, da busca por Deus, mas também pode profetizar o eterno retorno do fascínio exercido por contos como esses. Geyse e Gorete são personagens bem diferentes, assim como a Linda Mulher de Júlia Roberts tampouco se parece com algum vencedor de reality show. Apenas compartilham o destino de terem se tornado a representação de um arquétipo. Um desejo humano, demasiado humano, de ser reconhecido e tratado como especial por alguma força superior, mesmo sendo apenas mais um. Somente uma forma de vida, entre o infinito de possibilidades do universo, e não a imagem e semelhança do próprio Criador; apenas uma pessoa parecida com tantas outras, escolhida ao acaso, ou por um milionário no cinema ou por um programa na TV. Gorete faz sucesso porque toda mulher que se ache feia provavelmente quer ser bonita; porque toda a raça humana quer ser salva.