sábado, 12 de janeiro de 2008

Os sonhadores

Paris vivia uma primavera conturbada em 1968. Barricadas, pedradas, tiros, gases lacrimogêneos e cocktails Molotov explodiam pelas ruas em confrontos que, na definição do filósofo francês Gilles Lipovetsky, “reivindicavam um novo individualismo”.

Alheios a toda revolução que ocorria do lado de fora, três jovens bebem, sonham, discutem cinema, o mundo, a vida...e fazem muito sexo.

Os jovens são o casal de gêmeos Isabelle e Theo, filhos de um famoso escritor francês, e o estudante norte-americano Matthew. Em “Os Sonhadores” de Bernardo Bertolucci, eles representam o contraponto do diretor italiano ao fim das utopias de 68, apresentado por Bertolucci em “Beleza Roubada” (em que Jeremy Irons representa os sonhos dessa geração e morre de câncer).

“Maio de 68 pode não ter instaurado a Revolução com que sonhávamos, mas resultou numa mudança profunda dos costumes. Acho que foi por isso que fiz "Os Sonhadores”, disse Bertolucci em entrevista ao jornalista Luiz Carlos Merten.


Mas talvez mais do que uma visão menos pessimista dos acontecimentos que agitaram à França no fim da década de 60, “Os Sonhadores” traga como principal questão o egoísmo revelado nesse contexto. Por que lutar por aquilo que já temos? A resposta “pelos outros” não é suficiente para Isabelle, Theo e Matthew deixarem o paradoxo da liberdade e da independência conquistadas encerrados dentro de uma mansão e com as contas pagas pelos pais, para saírem às ruas e lutarem por aquilo que também acreditam.

Não só em uma época em que as experiências socialistas ainda não haviam fracassado, os hippies sonhavam com um mundo de paz e amor e a Guerra do Vietnã conferia à estupidez humana uma confirmação após as duas guerras mundiais, levar uma vida como a dos três não parece uma má idéia.

O apanhador no campo de centeio (encarte Under)

Explicar “O apanhador no campo de centeio”, de Jerome David Salinger, não é tão fácil quanto ter certeza de que você nunca havia lido algo parecido. Não há vilões, reviravoltas, suspense ou tragédias. Ao invés disso, há um garoto de 17 anos e suas impressões, nem sempre simpáticas, do mundo e das pessoas.

Holden Caulfield é um adolescente rico que após ser expulso do colégio, resolve passar uns dias sozinho perambulando por hotéis, bares e ruas de Nova York. A história se concentra nesse período e na época do colégio, mas é contada em lembranças, narradas de um quarto de uma possível clínica psiquiátrica, onde ele se recupera de um esgotamento.

Holden considera a maioria das pessoas cretinas, falsas e interesseiras, e vê nas crianças a pureza e a sinceridade que gostaria de poder manter. O nome do livro é justamente uma metáfora dessa vontade, explicada por Holden em uma conversa com sua irmãzinha Phoebe. “Sabe o que eu queria ser? (...) Eu fico imaginando a beira de um precipício maluco. E sabe o que eu tenho que fazer? Tenho que agarrar todo mundo que vai cair no abismo. Quer dizer, se algum deles sair correndo por ai sem olhar onde está indo, eu tenho que aparecer de algum canto e agarrar o garoto. Só isso que eu ia fazer o dia todo. Ia ser só o apanhador no campo de centeio e tudo. Sei que é maluquice, mas é a única coisa que eu queria fazer”.

Escrito em primeira pessoa e com uma linguagem para lá de coloquial, “O apanhador...” talvez seja um dos livros mais cultuados de todos os tempos. E não é para menos. A genialidade de J.D Salinger, em dar forma e ritmo à seqüência de anseios e angústias de Holden, pinceladas com ironias ácidas, humor negro e um realismo, as vezes cruel, mas sempre verdadeiro, diferenciam a narrativa de, provavelmente, tudo já realizado antes.

O livro foi escrito em 1951, uma época em que as escolas e os pais não eram tão tolerantes e os adolescentes não tinham liberdade para discutir muita coisa. O que de certa forma, “O apanhador..”,ajudou a mudar, ao relembrar o adulto que lê o livro um pouco do que ele pensava com seus 17 anos. Não todos, evidentemente. O “apanhador..” não é um livro para todos. Muita gente vai achar o Holden um cretino, assim como a recíproca, na certa, seria verdadeira. O improvável é alguém ficar indiferente.

quinta-feira, 3 de janeiro de 2008

Viva Christiania! (encarte under)

A sociedade alternativa de Raul Seixas existe e ela fica na Dinamarca, entre os lagos e os bosques gelados, no coração de Copenhague. Christiania é o nome do lugar, onde uma população de aproximadamente mil pessoas, não toma banho de chapéu, mas faz o que quer, pois é tudo da lei.

No parque onde as crianças brincam existe um lugar que ajuda a entender melhor a cidade de Christiania. Nele ficam os brinquedos deixados por elas depois que cansam da brincadeira. Lá elas trocam com outras crianças e vão brincar outra vez.

Ninguém é dono de nada em Christiania, nem das casas, que não são vendidas, mas entregues ao próximo da lista de espera para morar no local, quando alguém decide ir embora. Também não há leis ou hierarquia. Ao invés disso há consensos comunitários, como os que proíbem a violência, as drogas pesadas (como cocaína e heroína) e as armas. A pena máxima para quem descumprir alguma das recomendações é a expulsão da comunidade e o retorno ao capitalismo do mundo exterior. Tem funcionado e a população vive tranqüila.

Quem conta é Diogo Rinaldi, 27 anos e Sandrigo Vieira, 28, dois catarinenses, que moram em Tubarão, e visitaram a comunidade em abril, em uma viagem de trabalho à Dinamarca. “É uma experiência única, entrar em um lugar completamente diferente de tudo, e que a gente só lê e ouve falar na teoria, mas não tem idéia de como é estar lá, ver aquelas pessoas e conhecer de fato uma outra sociedade”, comenta Vieira.

A história de Christiania, nome dado à cidade em homenagem a um antigo rei dinamarquês, teve início em 1971, quando um terreno do exército foi invadido por hippies, punks, fugitivos (da lei, dos pais, do capitalismo) que seguiam a sugestão de um artigo publicado em um jornal chamado Hovedbladet (Revista Cabeça). A área de 90 km² foi considerada muito grande para uma ação policial para expulsar os invasores e o governo autorizou a permanência deles por lá com a intenção de promover uma “experiência social”. Porém por diversas vezes essa experiência esteve para ser encerrada e as terras retomadas pelo governo. Até hoje isso não aconteceu e a comunidade segue provando que é possível cada um cuidar da sua vida sem um poder central regulador.

Sr. Tulipen é um médico que esteve na fundação da cidade e mora lá desde então. Auto-denomidado Ministro das Relações Exteriores do lugar, o christianita, que virou artista plástico, passou uma tarde com Vieira e Rinaldi. “Ele viu que nós éramos turistas e veio puxar assunto. Contou a história de Christiania, disse que era o ministro das relações exteriores de lá e foi embora quando a mulher dele apareceu onde a gente estava. Foi uma cena incrível. Nós, na beira de um lago, com as árvores em volta, numa paz absoluta e tendo uma conversa agradável, quando de repente vem uma mulher loira e inchada da bebida, correndo, cambaleando e mandando todo mundo se f., completamente bêbada. Era a esposa do Sr. Tulipen. Ele tranquilamente nos pediu licença, disse que agora iria para a casa e saiu abraçado com a esposa” conta Rinaldi.

A casa em que mora o Sr.Tulipen foi erguida por ele. Hoje é proibido construir em Christiania. As que já existem, não seguem um padrão convencional. Há moradias em cima de árvores, dentro do lago, em forma de disco voador. As ruas são na grama ou de areia e não passam carros, só bicicletas. A entrada da rua Pusher é a única que informa, em um pórtico de madeira, que dali em diante começa Christiania, mas existem diversas outras entradas.

Milhares de pessoas de todo o mundo visitam o local, que é um dos principais pontos turísticos da Dinamarca, porém os moradores não gostam muito do estigma de atração turística. “A gente chegou lá filmando, mas apesar dos moradores não reclamarem, dava para ver que aquilo não agradava. Deve ser chato mesmo se sentir como que num circo” comenta Rinaldi.

Antes provavelmente era diferente e chamar a atenção não parecia uma má idéia, mas sim uma forma de divulgar o modelo alternativo de sociedade e, quem sabe, ajudar a mudar o mundo. Nos primeiros anos, um grupo de moradores de Christiania chamado Solvognen ficou conhecido na Europa por alguns atos curiosos. Ás vésperas do natal de 1974, vestidos de Papai Noel, integrantes do Solvognem distribuíram milhares de presentes em frente a lojas de departamento de Copenhague. O detalhe é que eles entraram nas lojas e pegaram os produtos fingindo para os funcionários terem sido contratados para fazer aquilo. Quando os proprietários ficaram sabendo, todos foram parar na cadeia, mas as imagens da polícia prendendo um bando de papais noéis, há alguns dias do natal, ganhou as manchetes dos principais jornais europeus.

Já na década de 80 eram as drogas que chamavam a atenção para Christiania. Em 1982, o governo começou a exigir providências. O local era apontado como o centro de entorpecentes do norte da Europa e a comunidade teve então que organizar programas de recuperação de drogados e expulsar comerciantes de drogas pesadas. Drogas mais leves, como a maconha, continuaram liberadas.

Apesar das excentricidades, Christiania não é um lugar de hippies malucos. Muitos dos moradores exercem profissões fora da comunidade, inclusive ganhando bastante dinheiro, apesar de pelas ruas não se perceber diferenças sociais. Dentro das casas, quem trabalha mais vive com mais conforto, mas ninguém é obrigado a trabalhar, nem para pagar as contas. O dinheiro para arcar com as despesas é recolhido, em parte, na forma de aluguel optativo: quem não tem dinheiro (ou simplesmente não quer), não precisa pagar, mas são menos de 20% os que não pagam. A outra parte fica por conta de bares, fábricas e lojas.

Em um dos bares de Christiania, Vieira e Rinaldi encontraram trabalhando por lá um brasileiro chamado Renato. Há 11 anos em Copenhague, o paulista de 40 anos, natural de Santos, sonha com uma casa na comunidade e colocou o nome na lista de espera. Quem tiver o mesmo sonho e entrar na fila hoje deve ter que esperar mais de 50 anos. Ou então pagar pelo lugar de alguém que esteja mais no começo da lista, já que não é possível comprar uma casa em Christiania. A utopia anarquista/socialista transformada em realidade, por enquanto ainda não está a venda.



Cristilândia, a Christiania verde amarela (crônica)


No Brasil é para lá de improvável que seja realizada uma experiência anárquica semelhante à Christiania da Dinamarca, mas se ela fosse feita, na certa deveria começar e terminar mais ou menos assim:

O presidente Lula, aconselhado pela equipe do governo, que após explicar que Christiania não é só uma marca de vodka “das boas”, como pensara o petista, e deixar claro a ideologia social posta em prática por lá, sanciona a lei que concede uma área invadida por dissidentes do Movimento dos Sem-Terra para a realização, inspirada no modelo dinamarquês, da “maior experiência social da história desse país”: a Cristilândia.

Porém o número de famílias que invadiram as terras era pequeno e então o governo opta por um concurso público para preencher o restante das vagas. Inicia-se a discussão sobre as cotas para negros, índios e estudantes de escolas públicas. Após muito bate-boca, o projeto, aprovado na Câmara, que prevê que 20% das vagas serão distribuídas pelo sistema de cotas é rejeitado no Senado. Como é final de ano, e no ano seguinte o carnaval começa logo no início de fevereiro, decide-se que a nova proposta, com as alterações sugeridas pelos senadores, será votada só depois da quarta-feira de cinzas. Agora ela é aprovada e 19% das vagas serão reservadas para negros, índios e estudantes de escolas públicas.

Paralela a discussão sobre as cotas, é aberta uma licitação para a construção da infra-estrutura e de novas casas em Cristilândia. As obras que estavam orçadas em 5 milhões de reais, saem por 20 milhões. A Polícia Federal realiza a operação “Bakunin se revira no túmulo”, e prende alguns suspeitos, mas as denúncias de desvio de dinheiro e superfaturamento não são comprovadas.

Enquanto isso a comunidade que já vive em Cristilândia passa por dificuldades. Traficantes de morros próximos ao local começam a utilizar a área para negócios e a disputa pelos melhores pontos de venda de drogas promove uma série de assassinatos. Assustados com a violência, muitos moradores abandonam as casas. A cidade-livre se transforma em uma área dominada pelo tráfico e o Fantástico faz uma matéria denunciando a exploração sexual de menores.

A polícia, que até então não entrava na comunidade, passa a fazer rondas e a receber propina dos traficantes. O Batalhão de Operações Especiais da Polícia Militar é chamado e mata quinze pessoas.

Com todos esses problemas, Cristilândia, volta, assim como quando foi criada, a ser tema de discussão em diversos círculos da sociedade. No programa da Luciana Gimenez, Padre Marcelo Rossi, Gretchen e Preta Gil opinam sobre o assunto. Cristovam Buarque escreve uma carta ao presidente Lula em que explica que o problema de Cristilândia só pode ser resolvido através da educação. Lula não entende direito e responde com algumas metáforas. Pouco tempo depois, o governo declara encerrada a experiência. Cristilândia agora é, oficialmente, só uma favela comum.