sábado, 12 de junho de 2010

(conto) Jeremias sabe a verdade

A realidade apresenta histórias que de tão extraordinárias a assimilação desses fatos como reais exige algum esforço. Essa aconteceu em Vargem Grande, um bairro tranquilo da zona oeste do Rio de Janeiro, que apesar de parte da metrópole mantém ainda um certo ar de interior. Senhora Anita foi encontrada morta dentro de casa com um tiro na cabeça e suas duas netas desapareceram. Nenhum vizinho ouviu o disparo ou foi capaz de fornecer qualquer informação à polícia, que revirou toda a residência à procura de vestígios. As únicas pistas encontradas e que chocaram os investigadores haviam sido deixadas pelo próprio autor do crime: uma carta obscura escrita à mão e um pen-drive.

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Ao senhor investigador,

Jeremias enxerga toda a sombria escuridão da madrugada e nada pode falar. Ele brilha com a lua e com os faróis solitários das motocicletas, mas não conta a verdade. A vizinhança já viu Jeremias pela rua, apesar de não reconhecê-lo. Senhora Anita passa por ele com o saco de lixo todo o final de tarde e Jeremias espera ela sair para entrar na casa numa terça-feira. É quando duas lindas meninas costumam visitar a vovózinha. Às vezes ficam para o jantar, às vezes apenas pegam algum dinheiro e partem em seguida. Bruna e Camila, gêmeas idênticas na exuberância do final de adolescência. Eu me masturbo pensando em nós três.

Na casa do final da rua o farmacêutico Ezequial recebe rapazes quando a esposa não está. Ela foi internada porque levou uma facada na prótese de silicone e há duas semanas que o marido transa todos os dias. Jeremias presenciou algumas indecências, mas hoje ele está na sala da senhora Anita, onde Bruna assiste ao jornal à espera da irmã no banho. A voz feminina que sai da televisão informa que o laranja está na moda. A modelo tropeça, mas eu não sinto pena. Jeremias passa atrás do sofá enquanto a garota dá risada da modelo. É o barulho do chuveiro que chama a sua atenção e ele caminha até a suíte. Decide deitar na cama, sobre algumas roupas que parecem ser da senhora Anita. Jeremias cheira todas as peças. A calcinha ele chega a rasgar um pouco com os dentes. A pureza e os modos de Jeremias me comovem.

Senhora Anita volta para casa devagarzinho. Não caminha muito bem, mas aos setenta anos, ainda trepa de vez em quando. Já ficou viúva duas vezes e agora anda de namoro com um cretino que eu conheço. Senhor Apolônio, meu professor de História na época da escola. Eu só lembro que ele dá aula olhando pro teto, a turma ri da sua cara de imbecil e ele desconta sua frustração em sermões de auto-ajuda. Nunca casou nem teve filhos. Publicou dois livros que ninguém leu e agora namora senhora Anita. Difícil saber como ainda não enfiou uma bala na cabeça.

- Tua irmã ainda tá se arrumando? Camila!Camila! Vou lá falar com ela!

Senhora Anita se arrasta até o quarto enquanto Jeremias pula para debaixo da cama. Sem estranhar a bagunça, a avó chama novamente por Camila.

- Tá tudo bem vózinha, já to saindo, eu sei que a água não é de graça! – responde a jovem com alguma doçura fingida. Sua vagina parece ainda mais doce. Senhora Anita sai do quarto e Jeremias continua debaixo da cama. A porta do banheiro é aberta para que o vapor não embace o espelho. Camila está nua e seca o cabelo sob o olhar atento do visitante. Ela se aproxima da cama cantando algum lixo popular adolescente e não percebe o som da respiração pesada de Jeremias. Vê a calcinha da avó e sente nojo enquanto o celular toca escondido em algum lugar outra melodia insuportável. Jeremias gosta de Jazz e música clássica. Eu lembro disso e antecipo Moonlight Sonata no iTunes.“I gotta feelin, that tonight´s gonna be a good night”, repete o aparelho celular. Dou risada imaginando o quanto ele pode estar enganado! Camila identifica de onde vem o som e se senta no colchão próxima à cabeceira. Ela inclina levemente o tronco para frente, mas a gravidade pouco pode fazer com aquele belo par de tetas firmes. Com o braço esquerdo alcança o aparelho caído no chão. Jeremias leva um susto, porém se mantém parado. A garota vê quem está ligando e prefere não atender. “I got a feeling..”, insiste o contato. Ela não desliga e a música se repete várias vezes. Talvez essa noite venha mesmo a ser uma boa noite. O tédio me consome e a curiosidade me leva à casa da senhora Anita.

-Boa noite, meu carro estragou e eu dei um azar danado de logo hoje ter esquecido o celular. Eu poderia usar o seu telefone, por favor?

A desculpa era clichê, mas eu uso um belo terno e dirijo um carro do ano. Senhora Anita me deixa entrar. Olho para Bruna deitada no sofá e fico excitado enquanto a velha me fala sobre as ameaças da cidade.

- Realmente é muito perigoso! – concordo com sinceridade.

- Alô, eu gostaria de chamar um guincho, meu carro estragou, mas eu não sei nem exatamente onde eu estou. Um minuto, por favor! - converso com o “tuuuuu” do telefone antes de perguntar à senhora Anita onde nós estamos. Repito as coordenadas. Agradeço com toda a educação ao “tuuuuu” e em seguida à vovózinha. Despeço-me e digo que vou aguardar no carro.

Senhora Anita me convida para uma xícara de café. Talvez ela queira transar e ache que eu seja capaz de fazer isso com ela. Eu aceito e espero por Jeremias.Sento no sofá de dois lugares que faz jogo com o de três onde Bruna está deitada. Desse ângulo desejo ainda mais abrir as suas pernas. Camila se materializa na sala sem que eu perceba a aproximação. Cumprimento-a com um “boa noite” e um sorriso amigável que ela retribui por polidez. Não se interessou por mim, pra ela eu sou um tio velho e feio. Talvez mesmo se soubesse das jóias, roupas e viagens que eu poderia lhe comprar, suas atenções não fossem maiores. Mas eu cansei dessas incertezas ou preliminares. E-bay, telefone e pronta-entrega também já me aborrecem. O que eu faço agora é o que me diverte por mais tempo. Talvez me faça esquecer.

Bruna prefere não sentar ao meu lado e puxa uma cadeira para colocar o sapato. Senhora Anita se aproxima trazendo o cafezinho e as netas dizem que já estão indo embora. Jogo a xícara na parede, saco uma arma e peço por favor que elas não gritem. Elas me obedecem. Jeremias vem correndo até a sala e eu vejo no olhar das mulheres o horror que a situação lhes causa. Senhora Anita recebe um tiro na cabeça assim que abre a boca pra implorar pela vida das netas. Deve pensar que me comove com altruísmo. As gêmeas gritam e é esse o sinal para que outros dois empregados saiam do carro em meu auxílio. Se a senhora Anita não estivesse morta eu lhe diria que seu último desejo foi cumprido e que belas escravas me interessam mais do que cadáveres.

No pen-drive que servia de peso para essa carta vocês podem conferir parte do trabalho de Jeremias. Meu amigo felino passou algumas semanas nessa rua, perambulando pelas sombras com uma microcâmera presa à coleira. Ah, a tecnologia e a ciência! Não esperava que fosse dar tão certo, mas Jeremias levou apenas alguns chutes ao ser descoberto onde não devia. No mais presenciou orgias, fofocas, lindas garotas nuas e muita sordidez. Ainda assim não parece me julgar pelo que viu. Faz ron ron quando eu chego e espera por mais bacon.
Att.
Um grande mentiroso.

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As imagens do pen-drive mostram somente um homem de capuz estuprando as duas gêmeas, amarradas e amordaçadas na cama da senhora Anita. Passados dois anos, ainda não se teve nenhuma notícia sobre o paradeiro das garotas. Quase todas as informações da carta foram confirmadas pela polícia, mas Apolônio nunca foi professor de História. Jeremias ninguém nunca soube se existiu.

quarta-feira, 9 de junho de 2010

(conto) Sexo no supermercado

Ela escolhia as maçãs enquanto eu me apaixonava. Quando levantou os olhos, lá estava eu. Não foi coincidência. Eu ainda olhava para baixo, para algum cesto de algo que eu não compraria, mas fingia me importar. Do outro lado do cesto ela me observava e sorria. Eu sabia disso mesmo sem vê-la, o porquê eu não sei. “Ana!”, gritou uma mulher que passava por nós com o carrinho cheio de compras e assim eu descobri o seu nome.
Passei a fitar diretamente as duas. Ana abraçou a amiga e me pareceu a mais doce das criaturas. Conversaram algumas futilidades que eu não me recordo. Talvez não tenha ouvido, talvez os peitos de Ana tenham me deixado surdo e insensível e agora eu fosse apenas olhos. Olhos que só viam os peitos épicos de Ana.
Ana se despediu da amiga e caminhou em direção ao corredor onde fica a geladeira. Eu fingi vontade de tomar um iogurte. Seus peitos continuavam lindos, mas eu já observava com mais calma todo o resto. Suas coxas também eram grandes e sua bunda magnífica. Ela era maior do que eu, um mulherão mesmo. Vestia uma mini-saia jeans e uma blusa branca decotada. Aproximei-me e falei “com licença”. Ela olhou pra mim, sorriu - exatamente como eu havia imaginado que fosse seu sorriso - e me deixou passar. Agora eu fingia me interessar pelos queijos.
Não tive coragem de puxar assunto. Pensei em perguntar as horas, mas eu usava um relógio grande que ela já podia ter visto. Também achei a pergunta um tanto besta. Precisava dizer algo engraçado, ou então que ela derrubasse a prateleira de presunto para que eu lhe mostrasse o quanto sou solidário. “Ah muito obrigada, você é muito gentil”, ela diria enquanto eu recolho do chão toda a comida. “E você desastrada”. Nós dois daríamos risada. Depois trocaríamos outro olhar e eu seria simpático.
Ana, porém, não derrubou nenhuma prateleira. Quando caminhou para o caixa, eu senti meu coração apertado. Corri atrás dela e gritei o seu nome um tanto mais alto que o necessário para que ela me escutasse. Ana se virou assustada e me viu parado no meio do corredor com um pacote de queijo em uma mão e um guarda-chuva na outra.
- Você esqueceu no corrimão! – disse lhe mostrando o guarda-chuva.
- Ai, eu vivo esquecendo! Mas pera ai, como você sabe o meu nome?
- Ouvi uma amiga sua falando.
-Ah sim! Muito obrigada, você é muito gentil! – foram as suas palavras, que soaram como um deja vu. Ana se aproximou, pegou o guarda-chuva sorrindo, agradeceu mais uma vez e foi embora. Eu ainda fiquei um tempo ali parado, perdido no balançar das coxas que afastavam Ana para sempre de mim. Alheio a todos e ao mundo, refletia em solidão: imaginava Ana nua e nós dois em uma cama grande. Uma história de amor e muito sexo. Foi quando eu ouvi uma voz familiar que bruscamente desapareceu com os meus sonhos.

-Filho duma puta, onde é que tu andava moleque? A mãe tá te procurando há mais de meia hora. Já era pra nós tá no morro! O Nem tá me esperando pra entregar o bagulho. Se ele tiver ralado eu vo vender a porra do teu Play. Pirralho filho duma puta!


Meu irmão puxou o meu braço, arrastando-me até a minha mãe, que me deu algumas palmadas. Por sorte Ana já havia ido embora ou eu morreria de vergonha.

segunda-feira, 7 de junho de 2010

Gorete: a cinderela trash do Pânico na TV



Gorete foi o nome mais comentado pelos brasileiros no Twitter e tirou da Globo o primeiro lugar no Ibope. Sucesso estrondoso com uma fórmula que parece nunca perder o encanto. Na insólita versão do Pânico na TV para o conto da Cinderela, Sabrina Sato assume o papel da Fada Madrinha - tendo a mídia como varinha mágica - e realiza os sonhos da protagonista. Para os Irmãos Grimm, à meia noite a carruagem vira abóbora. Gorete ainda deve posar pelada.

A nova Cinderela desfilou em um evento de moda em São Paulo sorrindo bastante agora que tinha dentes e balançando o longo aplique capilar de 3.800 reais. O vestido da versão clássica do conto era feito de retalhos, mas em uma releitura contemporânea, nada mais coerente do que servir para merchandising de alguma grife. O contraste entre a Gorete de hoje e a antes conhecida como Paula Veludo, cujas participações no Pânico variavam de papéis de bruxa a vampira, é que precisava chocar, numa época em que fórmulas como essa já foram quase esgotadas. Conseguiu. A plateia entusiasmada grita o nome de Gorete. O desfile é seu baile encantado; a glória, o seu príncipe.

Antes do evento, a mulher feia que demorou quase meia hora para conseguir ajuda para trocar um pneu, agora transformada - se não em Gisele Bündchen como queria, ao menos um tanto mais jeitosa – espera apenas poucos segundos até um jovem rapaz se dispor a fazer o serviço. Na história de Gorete, ao empurrãozinho na capacidade de despertar desejo sexual ou simpatia, soma-se a espécie de mutação que a fez se tornar o foco do interesse da massa. O conto do vestido rosa e as pernas de fora de Geisy Arruda já se perdia de vista antes do final feliz - talvez ligado a alguma das produtoras de filmes pornôs que mostraram interesse em um contrato - e Gorete teve seu caminho facilitado. O Pânico e a mídia também participaram da transformação de Geyse, mas nesse caso os chamados bons costumes e um senso de moralidade medieval é que por ainda terem força suficiente para dividir opiniões, fizeram as vezes de fada-madrinha.

Histórias como a das duas e de quaisquer outras cinderelas não remetem a um espaço ou tempo determinado. Sua origem é desconhecida, encontrando-se registros sem relação alguma entre milhares de anos. Kant, na Crítica da Razão Pura, apresenta a base para a compreensão do que é inato ao homem, do que tem como alicerce algo a priori, independente de qualquer experiência obtida através dos sentidos. Trata-se entre outras coisas, da busca por Deus, mas também pode profetizar o eterno retorno do fascínio exercido por contos como esses. Geyse e Gorete são personagens bem diferentes, assim como a Linda Mulher de Júlia Roberts tampouco se parece com algum vencedor de reality show. Apenas compartilham o destino de terem se tornado a representação de um arquétipo. Um desejo humano, demasiado humano, de ser reconhecido e tratado como especial por alguma força superior, mesmo sendo apenas mais um. Somente uma forma de vida, entre o infinito de possibilidades do universo, e não a imagem e semelhança do próprio Criador; apenas uma pessoa parecida com tantas outras, escolhida ao acaso, ou por um milionário no cinema ou por um programa na TV. Gorete faz sucesso porque toda mulher que se ache feia provavelmente quer ser bonita; porque toda a raça humana quer ser salva.