quarta-feira, 10 de junho de 2009

Nietzsche e o terreiro de macumba

Dona Deise ficou viúva mês passado. Inconformada com a nova situação, deu mais ouvidos à comadre que lhe dizia para tentar o contato com o falecido direto do além. Em meio ao desespero silencioso de sua alma, buscou o terreiro de Pai Maneco de Ogum. O espanto foi grande após o cachimbo do preto velho apagar e o espírito seguinte não ser o do finado esposo. Afirmou chamar-se Nietzsche.

- O senhor é um espírito do bem?

- Defina “bem”.

- Ah meu filho, que ajuda as pessoas, segue a vontade de Deus...

A resposta chocou Dona Deise, que tentou pensar em algo a dizer, mas já era tarde. Nietzsche desencarnara do pai de santo.Voltou para casa sem mais lembrar do falecido.

Aos 85 anos, poucas foram as noites que Dona Deise esqueceu as rezas antes de dormir. Dois “pai-nossos” e duas “ave-marias”, que somados ao dízimo e à caridade, de acordo com o Padre Zeca, seriam suficientes para ela garantir a eternidade no céu. Essa noite não foi diferente e com duas velas acesas, uma para o finado marido e outra para o espírito de nome complicado que ela já não recordava a pronúncia, emendou nas orações rotineiras um “creio em Deus pai”. Realmente acreditava, mas as palavras do espírito lhe deixaram a desconfiança, que em um instante é capaz de fazer ruir todas as crenças. “Deus está morto.” Passou a duvidar de tudo.

A sagrada família veio a ser o primeiro alvo. E se Jesus fosse apenas alguém que ouvisse vozes? E se Deus não existisse? Maria teria ficado grávida, assim como em toda a história da raça humana e da maioria dos animais, por que fez sexo? Por um momento lhe veio à mente a imagem de Nossa Senhora, que em movimentos sensuais, despia-se do manto sagrado sob o olhar atento de José. A imagem seguinte foi ainda mais perturbadora. Viu a si própria, com um rosário na mão, repetindo a mesma cena inútil por toda a vida. – “Não respeitaria um Deus que tem necessidade de ser adorado o tempo todo”- Pensou na Bíblia, nas guerras e nos mortos. - “Vista luvas contra a sujeira antes de abrir o Novo Testamento”-. E sentiu compaixão por si mesma. - “O homem perde poder quando se compadece e o sofrimento multiplica-se”-.

Não era bom admitir, mas as frases do espírito a essa altura já se assemelhavam mais à verdade que à loucura. Mais do que isso, despertavam-na para o abismo que uma conclusão a levaria. Teria que admitir que o Deus cristão, caso exista da maneira como foi concebido, não passe de um sádico. Que mais provável seria Ele representar uma espécie de alter-ego de toda podridão nefasta que habita o coração do homem comum, consumido por suas mazelas, ignorado e impotente perante a vida, e que abraça essa ignorância como única forma de sobreviver a sua própria miséria. Sacrifica-se na penitência por não ser digno nem de piedade. “E aqueles que dançavam foram julgados insanos por aqueles incapazes de ouvir a música”. E que talvez as instituições cristãs tenham mesmo tomado partido de tudo o que é fraco, baixo e fracassado e, a partir disso, forjado um ideal de oposição a todos os instintos de preservação da vida saudável. Na negação da natureza, vêem tudo o que seja contrário a esses instintos como uma glória a ser alcançada; no egoísmo transformado em culpa, elevam o amor ao próximo para um lugar acima do amor a si mesmo; na invenção da alma, abandonam o corpo; na invenção do além, subjugam esse mundo. E quiçá que a história ocidental tenha se erguido sobre esses pilares, que de tão fracos só são capazes de sustentar a leveza intrínseca a uma sociedade de dementes, que em uma corrida demente, foge o mais rápido que pode de qualquer vestígio de algo que os leve a pensar ao invés de apenas procurar a posição mais confortável no rebanho. E ignoram assim por toda vida a beleza da experiência humana e de sua complexidade, das quais só os mais fortes conseguem ter uma idéia e encará-la ao invés de tentar esquecê-la. De que pode não existir mais nada, e que possamos desaparecer pela eternidade no dia seguinte, mas mesmo assim sentir que essa vida é extraordinária e merece ser aproveitada ao máximo e sempre.

Dona Deise já desistira de dormir. Experimentava pela primeira vez em anos uma sensação nova, que não saberia descrever, mas que habita uma zona entre o desespero e o remorso daqueles que descobrem tarde demais o quanto haviam sido enganados. Tentou chorar e não conseguiu. Lembrou-se que de certa forma foi feliz. E de que sempre foi cômoda a certeza. Em contrapartida, recordou-se dos prazeres de que se absteve, dos pecados inexistentes pelos quais se culpou e, acima de tudo, de que perdeu tempo, muito tempo, essa medida preciosa que já lhe falta e que talvez nunca volte. Se a morte há pouco parecia um reinício, agora lhe ameaça como o fim nada glorioso de uma existência ofuscada pela moral e quase destruída pelo tempo. Quis acreditar de novo e não conseguiu. Tentou conformar-se com a liberdade.

Foi só então que, passado um pouco o choque provocado pelo discurso do espírito e descontada a ingenuidade da interlocutora, Dona Deise abriu os olhos para o que poderia tê-la confortado desde o início. Se um espírito havia mesmo entrado em contato com ela, só o fato de ele existir, já faria de metade das coisas que foram ditas mentiras. A outra metade certamente seria resultado de uma alma perturbada que ainda não encontrou do outro lado o caminho para a luz. A vida voltava a ser bela. Agora só precisava decidir se acreditaria daqui para frente no cristianismo e na eternidade no reino dos céus ao lado de Jesus, ou na umbanda, espiritismo, ou alguma outra crença que justifique a experiência desta tarde.

Acabou por esquecer a escolha. Seguiu pelos seus dias sem nunca mais duvidar de nada. Achou melhor acreditar em tudo, seja no padre, no bispo, no pastor ou no pai de santo. Se conhecesse Buda, Shiva ou Zaratustra, acreditaria também. Criou um método peculiar em que através dele esquecia-se automaticamente das contradições que cada doutrina pudesse carregar em relação às outras. Era como se cada uma ocupasse uma área isolada das demais, e que podia ser acionada de acordo com a situação. Dependendo da graça divina a ser alcançada, rezava aos santos católicos, entregava metade da sua aposentadoria às igrejas evangélicas ou recorria a intervenções espíritas. Quando foi apresentada a Alá, passou a usar a burca. O que na sinagoga causou espanto à comunidade judaica, da qual já fazia parte.

Meses depois voltou a freqüentar o terreiro de Pai Maneco de Ogum. Ato que descoberto pelo missionário J. J. Souza, super pastor de uma das igrejas evangélicas da qual era fiel, serviu de tema principal para a pregação anterior à sessão de descarrego. Acusada de adoradora do demônio, acreditou quando foi informada que estava possuída. Entregou dessa vez a aposentadoria inteira para se ver livre do encosto.

Na semana seguinte, utilizando-se do método para esquecer as divergências, voltou ao terreiro de Pai Maneco de Ogum. Lá foi informada pelo novo proprietário da casa que o pai de santo agora atende na cadeia, preso por estelionato e charlatanismo. A essa altura nem se deu conta de que fosse o Pai Maneco de Ogum um vigarista, o episódio do espírito teria sido uma farsa. E que não tendo de fato entrado em contato com o mundo do além, todas as dúvidas voltariam, já que, a princípio, foi o conteúdo do discurso do espírito que se dizia chamar Nietzsche que a impressionara e a fizera pensar por si e não o fato desse conteúdo ter sido dito por um espírito encarnado no corpo de Pai Maneco. O contato mediúnico só foi levado em conta, quando esse discurso foi justamente posto em xeque por ter vindo de um espírito, que em um paradoxo absurdo negava entre outras coisas a vida após a morte. Por sorte ou azar, Dona Deise já não pensou em nada disso. A caminho de casa, descobriu o Rastafari.