sábado, 5 de dezembro de 2009

Conversa de elevador


- Nossa, que orelha enorme tem essa criança!

-O quê?

- É seu filho?

- É!

- Hum, imaginei!

- Eu não acredito no que eu estou ouvindo!

- E eu não acredito no tamanho dessas orelhas! Olha isso!

- Tira a mão do meu filho!

- Desculpa, eu fiquei impressionado – respondeu o homem enquanto afastava o dedo indicador da orelha do garoto. Em seguida passou a bater com as mãos nas próprias orelhas e a simular com a boca o barulho de um helicóptero. O menino começou a chorar.

- Meu amor, não chora, esse homem é doido!

-Dumbo, dumbo, dumbo! – insistiu, equilibrando-se agora na ponta dos pés e fingindo decolar vôo com o movimento das orelhas.

- Você é doente!

- Dumbo, dumbo, dumbo!

- Idiota! Para com isso!

- A senhora já viu o filme do Dumbo?

- Cala a boca!

- É um clássico, a senhora deveria assistir.

- Não me interessa!

- O Dumbo era desprezado por causa das orelhas gigantes, mas o ratinho Timóteo fica amigo dele e faz com que ele perceba que essas orelhas na verdade são um dom. É por causa delas que o Dumbo pode voar. E qual elefante não ia querer voar? É claro que isso é uma metáfora.

- Realmente não me interessa!

- Você não gostaria de voar?

- Não fala com o meu filho!

- É claro também que o significado dessa metáfora nem sempre é verdade. Depende da situação. Um troço desses, às vezes, pode ter mesmo um lado positivo maior que o negativo, se você procurar bem. Outras vezes não. O seu filho não vai voar por causa das orelhas.

- Meu senhor, eu não quero ouvir isso. Não liga meu filho, não tem nada de mais com as suas orelhas. Você é lindo!

- As suas orelhas também são enormes, mas com o cabelo por cima a gente quase nem nota. Só percebe um volume assim do lado e uma pontinha que escapa entre os fios. A maioria das mulheres na sua idade usa o cabelo curto. Eu duvido a senhora cortar.

- Cala essa boca!

- Aposto que os seus amiguinhos implicam com a sua orelha.

- Não fala com o meu filho!

- As crianças são cruéis, isso é clichê. Mas elas nem ligam para as orelhas em si. Não do jeito que a gente liga, como um ponto negativo em relação à possibilidade de transar. Quer que eu diga o porquê disso?

- Não, eu quero que você cale essa boca!

- Eu acho importante a senhora saber.

- Saindo daqui eu vou à polícia!

- Se o Dumbo não voasse, ele não conseguiria fazer sexo com as elefantinhas. Elas não enxergariam nele nada mais que uma anomalia, uma diferença em relação ao conceito anterior a elas. E elas querem apenas duas coisas: que as outras elefantinhas invejem o elefante com quem ela acasala e que esse elefante represente um ideal de força, beleza e inteligência, um conceito. É uma questão natural, de preservação da espécie, Darwin, Nietzsche, essas coisas. Mas ao escapar da representação apenas da diferença e se tornar o símbolo da habilidade de voar, a orelha gigante inverteu completamente a sua carga. Toda elefanta passou a querer transar com o Dumbo. Não é interessante?

- Tem uma criança aqui! Eu vou abrir um processo contra você!

- Mas as crianças ainda não sentem tesão, então eu não sei porque elas ligam para isso, não faz muito sentido. O fato é que elas ligam. Acho que elas imitam os adultos. Ou será que isso é uma característica intrínseca ao ser humano? O que a senhora acha?

- Meu senhor, eu acho que você precisa de tratamento.

- O que você acha?

- Já falei para você não falar com o meu filho!

- Tudo bem, vamos falar da senhora. É casada?

- Não interessa!

- Papai mora com você ?

- Não fala com o meu filho!

- Só tentei ser simpático!

- Cala essa boca!

- Calma, não precisa gritar! Todos aqui têm orelhas!

- Desgraçado, filho da puta!

A mulher gritava descontrolada e, dominada pela fúria, partiu para cima do homem, que se defendeu como pôde da seqüência de tapas e joelhadas.

- Não vá pensar que eu estou paquerando a senhora, por favor.

- Desgraçado, filho da puta!

-Calma minha senhora!

- Desgraçado, filho da puta!

-Ai! Você acertou o meu saco!

- Idiota!

- De novo! Ahhh, agora chega!

Um forte empurrão levou a mulher a bater com as costas na parede. Pensou em partir novamente para cima do homem, mas viu que era inútil. Deixou o corpo escorregar e sentou-se aos prantos.

- Olha, a luz voltou! Boa tarde!

- Filho da puta!

quarta-feira, 10 de junho de 2009

Nietzsche e o terreiro de macumba

Dona Deise ficou viúva mês passado. Inconformada com a nova situação, deu mais ouvidos à comadre que lhe dizia para tentar o contato com o falecido direto do além. Em meio ao desespero silencioso de sua alma, buscou o terreiro de Pai Maneco de Ogum. O espanto foi grande após o cachimbo do preto velho apagar e o espírito seguinte não ser o do finado esposo. Afirmou chamar-se Nietzsche.

- O senhor é um espírito do bem?

- Defina “bem”.

- Ah meu filho, que ajuda as pessoas, segue a vontade de Deus...

A resposta chocou Dona Deise, que tentou pensar em algo a dizer, mas já era tarde. Nietzsche desencarnara do pai de santo.Voltou para casa sem mais lembrar do falecido.

Aos 85 anos, poucas foram as noites que Dona Deise esqueceu as rezas antes de dormir. Dois “pai-nossos” e duas “ave-marias”, que somados ao dízimo e à caridade, de acordo com o Padre Zeca, seriam suficientes para ela garantir a eternidade no céu. Essa noite não foi diferente e com duas velas acesas, uma para o finado marido e outra para o espírito de nome complicado que ela já não recordava a pronúncia, emendou nas orações rotineiras um “creio em Deus pai”. Realmente acreditava, mas as palavras do espírito lhe deixaram a desconfiança, que em um instante é capaz de fazer ruir todas as crenças. “Deus está morto.” Passou a duvidar de tudo.

A sagrada família veio a ser o primeiro alvo. E se Jesus fosse apenas alguém que ouvisse vozes? E se Deus não existisse? Maria teria ficado grávida, assim como em toda a história da raça humana e da maioria dos animais, por que fez sexo? Por um momento lhe veio à mente a imagem de Nossa Senhora, que em movimentos sensuais, despia-se do manto sagrado sob o olhar atento de José. A imagem seguinte foi ainda mais perturbadora. Viu a si própria, com um rosário na mão, repetindo a mesma cena inútil por toda a vida. – “Não respeitaria um Deus que tem necessidade de ser adorado o tempo todo”- Pensou na Bíblia, nas guerras e nos mortos. - “Vista luvas contra a sujeira antes de abrir o Novo Testamento”-. E sentiu compaixão por si mesma. - “O homem perde poder quando se compadece e o sofrimento multiplica-se”-.

Não era bom admitir, mas as frases do espírito a essa altura já se assemelhavam mais à verdade que à loucura. Mais do que isso, despertavam-na para o abismo que uma conclusão a levaria. Teria que admitir que o Deus cristão, caso exista da maneira como foi concebido, não passe de um sádico. Que mais provável seria Ele representar uma espécie de alter-ego de toda podridão nefasta que habita o coração do homem comum, consumido por suas mazelas, ignorado e impotente perante a vida, e que abraça essa ignorância como única forma de sobreviver a sua própria miséria. Sacrifica-se na penitência por não ser digno nem de piedade. “E aqueles que dançavam foram julgados insanos por aqueles incapazes de ouvir a música”. E que talvez as instituições cristãs tenham mesmo tomado partido de tudo o que é fraco, baixo e fracassado e, a partir disso, forjado um ideal de oposição a todos os instintos de preservação da vida saudável. Na negação da natureza, vêem tudo o que seja contrário a esses instintos como uma glória a ser alcançada; no egoísmo transformado em culpa, elevam o amor ao próximo para um lugar acima do amor a si mesmo; na invenção da alma, abandonam o corpo; na invenção do além, subjugam esse mundo. E quiçá que a história ocidental tenha se erguido sobre esses pilares, que de tão fracos só são capazes de sustentar a leveza intrínseca a uma sociedade de dementes, que em uma corrida demente, foge o mais rápido que pode de qualquer vestígio de algo que os leve a pensar ao invés de apenas procurar a posição mais confortável no rebanho. E ignoram assim por toda vida a beleza da experiência humana e de sua complexidade, das quais só os mais fortes conseguem ter uma idéia e encará-la ao invés de tentar esquecê-la. De que pode não existir mais nada, e que possamos desaparecer pela eternidade no dia seguinte, mas mesmo assim sentir que essa vida é extraordinária e merece ser aproveitada ao máximo e sempre.

Dona Deise já desistira de dormir. Experimentava pela primeira vez em anos uma sensação nova, que não saberia descrever, mas que habita uma zona entre o desespero e o remorso daqueles que descobrem tarde demais o quanto haviam sido enganados. Tentou chorar e não conseguiu. Lembrou-se que de certa forma foi feliz. E de que sempre foi cômoda a certeza. Em contrapartida, recordou-se dos prazeres de que se absteve, dos pecados inexistentes pelos quais se culpou e, acima de tudo, de que perdeu tempo, muito tempo, essa medida preciosa que já lhe falta e que talvez nunca volte. Se a morte há pouco parecia um reinício, agora lhe ameaça como o fim nada glorioso de uma existência ofuscada pela moral e quase destruída pelo tempo. Quis acreditar de novo e não conseguiu. Tentou conformar-se com a liberdade.

Foi só então que, passado um pouco o choque provocado pelo discurso do espírito e descontada a ingenuidade da interlocutora, Dona Deise abriu os olhos para o que poderia tê-la confortado desde o início. Se um espírito havia mesmo entrado em contato com ela, só o fato de ele existir, já faria de metade das coisas que foram ditas mentiras. A outra metade certamente seria resultado de uma alma perturbada que ainda não encontrou do outro lado o caminho para a luz. A vida voltava a ser bela. Agora só precisava decidir se acreditaria daqui para frente no cristianismo e na eternidade no reino dos céus ao lado de Jesus, ou na umbanda, espiritismo, ou alguma outra crença que justifique a experiência desta tarde.

Acabou por esquecer a escolha. Seguiu pelos seus dias sem nunca mais duvidar de nada. Achou melhor acreditar em tudo, seja no padre, no bispo, no pastor ou no pai de santo. Se conhecesse Buda, Shiva ou Zaratustra, acreditaria também. Criou um método peculiar em que através dele esquecia-se automaticamente das contradições que cada doutrina pudesse carregar em relação às outras. Era como se cada uma ocupasse uma área isolada das demais, e que podia ser acionada de acordo com a situação. Dependendo da graça divina a ser alcançada, rezava aos santos católicos, entregava metade da sua aposentadoria às igrejas evangélicas ou recorria a intervenções espíritas. Quando foi apresentada a Alá, passou a usar a burca. O que na sinagoga causou espanto à comunidade judaica, da qual já fazia parte.

Meses depois voltou a freqüentar o terreiro de Pai Maneco de Ogum. Ato que descoberto pelo missionário J. J. Souza, super pastor de uma das igrejas evangélicas da qual era fiel, serviu de tema principal para a pregação anterior à sessão de descarrego. Acusada de adoradora do demônio, acreditou quando foi informada que estava possuída. Entregou dessa vez a aposentadoria inteira para se ver livre do encosto.

Na semana seguinte, utilizando-se do método para esquecer as divergências, voltou ao terreiro de Pai Maneco de Ogum. Lá foi informada pelo novo proprietário da casa que o pai de santo agora atende na cadeia, preso por estelionato e charlatanismo. A essa altura nem se deu conta de que fosse o Pai Maneco de Ogum um vigarista, o episódio do espírito teria sido uma farsa. E que não tendo de fato entrado em contato com o mundo do além, todas as dúvidas voltariam, já que, a princípio, foi o conteúdo do discurso do espírito que se dizia chamar Nietzsche que a impressionara e a fizera pensar por si e não o fato desse conteúdo ter sido dito por um espírito encarnado no corpo de Pai Maneco. O contato mediúnico só foi levado em conta, quando esse discurso foi justamente posto em xeque por ter vindo de um espírito, que em um paradoxo absurdo negava entre outras coisas a vida após a morte. Por sorte ou azar, Dona Deise já não pensou em nada disso. A caminho de casa, descobriu o Rastafari.

quarta-feira, 22 de abril de 2009

A sinuca e o nada


E assim foi. O fim, a parte e o todo. Todos os pedaços que formam o nada. Que é exatamente o que isso quer dizer. Uma junção semi-elaborada de palavras que mantém entre si o mínimo necessário de coerência. Com a pontuação adequada e algum tempo de um desperdício necessário pode-se até encontrar alguma idéia oculta e filosófica... que obviamente não existe.

Mas apesar disso não dizer nada, e aparentemente esse fato tenha sido devidamente explicado no parágrafo anterior, ainda assim algo faz com que duvidemos até o último momento de verdades explícitas dessa forma. Principalmente verdades sobre fatos que deveriam ser no mínimo constrangedores. Como o desse texto não dizer nada.

Já se foram dois parágrafos, e para não abusar da boa vontade do leitor, que a essa altura já foi quase convencido, mas olha para baixo, vê o tamanho do texto e ainda duvida que não exista realmente nada nele, a melhor coisa a fazer seria aconselhá-lo a parar de ler e talvez indicar leituras que valham a pena, mas fazer isso seria inserir informações, o que deflagraria com toda a certeza que o que foi dito anteriormente é mentira. Encerrada a dúvida e a curiosidade, os textos, os livros ou os filmes perdem o sentido. O que nesse caso específico cria uma situação peculiar, já que foi afirmado nunca ter havido um sentido aqui, apesar de que a dúvida aparentemente foi mantida. Pelo menos nos que leram até aqui e chegam agora ao quarto parágrafo.

Talvez esse seja o melhor momento para se certificar da verdade. Se tiver paciência e muito tempo livre, reler os três primeiros parágrafos. Desistir nesse ponto também é válido. Apesar de que agora o texto já não pareça tão grande e a proximidade de um (im)possível final revelador torne justamente esses quatro últimos parágrafos muito mais atrativos do que os outros que já foram lidos.

Passado o momento quase reflexivo, aqui voltamos novamente ao nada, com o perdão se isso soou redundante. Não acredito que tenhamos fugido até agora ao que se afirmou, mas o quarto parágrafo foi mesmo um momento delicado. Mais duas ou três palavras poderiam configurar um ensinamento, instrução, humor, compartilhamento de experiência, ou qualquer outra sorte de tema usado para justificar o ato de escrever. Os mais ortodoxos devem parar por aqui e acusar-me de escrever mentiras ao invés de nada. Os que me perdoaram os parênteses em “(im)possível final revelador” e me perdoam agora essas aspas que também poderiam ser consideradas uma manipulação, acredito que não devem mais desistir. Talvez a essa altura já tenham aceitado a idéia de que tudo o que leram até agora não tem mesmo absolutamente nenhuma finalidade, assim como o que ainda está por vir. Continuam a ler simplesmente por compartilhar algo que, é claro, eu não posso explicar aqui o que seja. Não que eu saiba.

Depois de 470 palavras e com prováveis poucos leitores, descontadas as repetidas, artigos, conjunções, devem ter sido lidas pelo menos 300 palavras com sentido. Algumas inclusive com vários, entre elas a própria “sentido”. Não que isso tenha alguma importância ou revele o que quer que seja. As palavras obviamente são dotadas de sentido ou não existiriam, ao contrário desse texto, que apenas existe. Mas “existir” é uma palavra muito perigosa e qualquer descuido pode fazer o texto ser classificado como filosofia. Melhor passarmos para o sétimo parágrafo.

Sete pecados capitais, pintar o sete, sete dias da semana, sete cores do arco-íris, sete maravilhas do mundo, sete notas musicais. Terminar o texto com sete parágrafos poderia provocar especulações místicas ou astrológicas. Passamos ao oitavo e último.

Se esse fosse um texto com algum objetivo, e não apenas uma “junção de palavras que mantém entre si o mínimo necessário de coerência”, como se afirmou logo no início, para que esse objetivo fosse atingido aqui seria necessário uma explicação. É o último parágrafo, e apesar de que com isso a chance de perder os bravos leitores que resistiram até aqui seja bem pequena, não se pretende estendê-lo demais e muito menos explicar o que quer que seja, mas isso já deve ter ficado evidente nesse ponto. Faltam poucas linhas, e agora só uma frase absolutamente genial conseguiria justificar tudo o que foi escrito até aqui, sendo que esse tudo na realidade pretende-se que seja nada. Não resta muita coisa a se fazer. Apesar de os parágrafos não possuírem um tamanho delimitado e seja aceitável continuar indefinidamente nesse mesmo último parágrafo, já foi dito não ser essa a intenção. Quem ainda procura esse sentido inexistente e pensa ser capaz de atingir o extremo de reler esse texto mesmo após chegar ao final sem nenhuma teoria sobre o vazio, o nada, a existência, a verdade ou o que quer que seja, deveria receber aqui um conselho. Como o leitor certamente percebeu, é desnecessário dizer que o conselho não será dado. Já quem procura falhas, e momentos em que alguma forma de ensinamento, teoria, ou qualquer outra coisa que não seja simplesmente nada tenha sido dita, deve encontrar. Afinal, chegamos agora a quase mil palavras e mais de cinco mil caracteres divididos em oito parágrafos. O oito, aliás, é o número da bola, que em uma versão clássica, encerra o jogo de sinuca. Não que isso tenha algo relacionado com tudo ou com nada, mas concordo com os que irão afirmar que isso não deixa de ser um ensinamento para quem nunca jogou sinuca.