domingo, 4 de julho de 2010

(conto) Carta aos que chegaram do passado

Sempre fui fascinado por suas civilizações. Fascinado talvez não seja a palavra mais adequada, já que o sentimento que elas me despertam é a mais profunda e sincera aversão. Todavia o motivo desta minha carta não é dizer o que eu penso, e sim ajudá-los, o que de certa forma não deixa de ser irônico. Há tempo reparo na dificuldade que muitos encontram para se adaptar a esse mundo, totalmente novo para vocês. E desde que passamos a reviver pessoas de épocas remotas, como no famoso caso dos alpinistas do topo do Himalaia, o que tenho notado é uma falta de consideração tremenda de nossa parte. Nossa concepção de história, por ser baseada em centenas de milênios, não se preocupou em preservar em detalhes a memória de sociedades primitivas, em que pessoas como vocês viveram. E trazê-los de volta a vida dessa maneira, sem responder a questões básicas de sua época, não me parece justo. Por isso pesquisei em tudo o que me foi possível ter acesso sobre o passado distante e escrevi isso que a partir de agora divido com quem se interessar. Tentei ao mesmo tempo explicar o início da era atual, inclusive através de trechos de outros documentos, que acabaram por se perder entre os séculos. Espero lhes ser de alguma valia, ainda que deixe muitas questões sem resposta. Encarem essa carta apenas como uma introdução ao nosso mundo - que agora também é o de vocês – e preparem-se para desvendá-lo sem pressa. Comecemos então pelo final da era que muitos dos que chegaram do passado chamavam de contemporânea.

O estudante de Biofísica Frederico Saliner talvez seja a primeira pessoa a quem eu deva apresentá-los para que possam entender como o mundo em que vocês viviam deixou de existir. Em meados do século XXI do antigo calendário cristão, ele foi pioneiro ao realizar com sucesso o experimento que literalmente dividiu a história e marcou o ponto zero de onde décadas depois, com a criação do novo calendário, a primeira era seguinte a de vocês teve início.

A experiência trouxe de volta à vida um herdeiro extraordinariamente rico, de dez anos, que morrera atropelado. A família do garoto, desesperada com a tragédia, congelou o corpo recém-falecido e passou a procurar no submundo científico toda sorte de procedimento que lhe prometesse uma esperança. Os corpos indigentes utilizados por Saliner e por centenas de outros cientistas nas pesquisas foram esquecidos pela história e o garoto foi considerado pela ciência o primeiro ser humano a ressuscitar.

A notícia surgiu no início como boato, que meses depois foi confirmado e comprovado por Saliner. Em um pronunciamento assistido por bilhões de pessoas, ele explicou por alto as dificuldades do processo e as técnicas utilizadas para a realização da façanha. Lembrou que cada caso seria um desafio, mas que o futuro não deixara por isso de ser promissor, uma vez descoberta a forma de reconstruir o cérebro e trazê-lo de volta à atividade sem sequelas. Explicou também os motivos pelos quais a notícia não foi imediatamente divulgada, que basicamente orbitavam o mesmo ponto: os imprevisíveis e drásticos resultados da descoberta. Já armado para enfrentar as conseqüências e lucrar o máximo possível, o cientista concedeu a primeira entrevista coletiva, ao lado do garoto. .
- Podemos ser imortais? – foi a primeira pergunta.
- É provável que sim. E que no futuro a única maneira de um ser humano morrer seja destruindo completamente o seu cérebro, e com isso suas memórias, conhecimentos e experiências. É isso que faz dele um ser único e reconhecido como tal. Todo o restante, coração, estômago, pulmões, pele, rosto, assim como já está sendo feito, poderá sempre ser consertado ou substituído. Reconstruir as conexões destruídas no cérebro, pelo tempo, perda de oxigenação ou qualquer outro processo, resultante ou não em morte cerebral, pode ser o caminho para a vida eterna.

Saliner não chegou a viver o suficiente para ver realizada sua profecia. Apesar de ter ressuscitado várias vezes, a medicina nessa época ainda não havia avançado a ponto de conseguir manter infinitamente o corpo inteiro funcionado. Nenhum contemporâneo de vocês sobreviveu por mais de 150 anos. .
A pergunta seguinte foi para o garoto e talvez tenha sido ainda mais interessante.
- O que você viu durante o período em que esteve morto? – indagou o jornalista, sem os eufemismos cabíveis frente a uma criança.
- Não vi nada.
Não consigo imaginar alguma outra frase na história que tenha causado tamanho impacto. Nos meses seguintes, enquanto a discussão sobre o que ocorrera no laboratório de Saliner ainda era o assunto mais discutido em todo o mundo e outros procedimentos semelhantes ao do garoto já haviam sido realizados com o mesmo sucesso, tentou-se justificar o fato dessas pessoas não se lembrarem de nada após a morte, com um raciocínio similar ao da reencarnação, e do esquecimento das vidas passadas. Ou então dizendo que o espírito é completamente independente do cérebro. Mesmo assim as instituições que vocês chamavam de igrejas sentiram-se ameaçadas, uma vez vislumbrada a hipótese de a morte não mais ser temida. Adotaram então uma postura ferozmente contrária à nova técnica e o tom de ameaça adquiriu requintes macabros nos cenários descritos pelos líderes religiosos como o destino daqueles que desafiassem a hora escolhida por Deus para desencarnar. O slogan “Morte é vida”, ganhou fama após ser tema de uma campanha mundial patrocinada pela igreja católica, que conseguiu com isso manter por algum tempo parte do seu poder e diminuir a angústia dos mais pobres, impossibilitados de arcar com as despesas de ressuscitar. Já em cultos evangélicos, pastores afirmavam ter conversado diretamente com Deus sobre os acontecimentos e a mensagem era clara: Saliner é o demônio!

O discurso começou a mudar assim que alguns desses líderes caíram enfermos. J.J Souza, o super missionário da Igreja Universal da Graça do Senhor Jesus Cristo Todo Poderoso, foi o primeiro dos grandes a se submeter ao tratamento de Saliner. A princípio tentou de todas as maneiras manter o sigilo sobre a sua ressurreição, mas na segunda morte acabou descoberto. Passou a adotar o discurso de que se Saliner conseguiu o que conseguiu foi porque Deus deixou. E que o próprio Deus lhe disse pessoalmente durante o período em que esteve morto “vai, ressuscita e termina a tua obra”. Não teve como negar o pedido, mas informou aos fiéis que a morte continuava sendo o único caminho para o paraíso ao lado de Jesus e que apenas ressuscitou para cumprir a missão, a ele outorgada por Deus, de elevar a fé do povo ao máximo nesses tempos apocalípticos. Já o Papa seguiu postura contrária após se submeter ao processo. Convocou a imprensa para a Praça de São Pedro no Vaticano e lá anunciou a renúncia ao cargo. Justificou a atitude assumindo a culpa de não ter certeza da existência Deus, que ao morrer não viu nada do outro lado e que nem ao menos sabe se realmente existe algo a ser visto. Por essas dúvidas abraçava agora a ciência de Saliner. Dias depois se mudou para Ibiza.

A renúncia do Papa foi o estopim para a ruína de todo o pensamento teológico ocidental. Por alguns anos ainda procurou manter-se as massas ligadas à fé. Buscava-se com isso evitar a anarquia generalizada que poderia ter início caso as amarras morais impostas no cabresto das religiões, os pecados e o medo do inferno, evaporassem todos ao mesmo tempo e em espíritos pouco habituados à liberdade. Mas o tempo se encarregou de enterrar de vez o Cristianismo e todas as outras religiões de sociedades civilizadas. Após alguns séculos, a profecia de Saliner se cumpriu. A ciência se desenvolveu como nunca, com os grandes gênios trabalhando em suas obras por um período muito maior, e a cura de todas as doenças não tardou a chegar. Já era possível viver para sempre. O esboço do que viria a ser o novo mundo estava traçado.

No início, anarquia, revolta e violência cresceram em um assustador exponencial, mas que nos anos seguintes puderam ser domados através de um acesso muito mais barato à ressurreição e a uma reforma nos sistemas judiciário e penal. Termos como homicídio tiveram que ser revistos e novas penas impostas. Ocultação de cadáver, por exemplo, passou a ser punido com prisão perpétua, sem possibilidade de ressurreição, em casos em que a ocultação do corpo resultou na impossibilidade do processo de retorno à vida da vítima. Mesma pena aplicada para todas as outras ocorrências em que o cérebro foi perdido, como incêndios criminosos, bombas e tiros de grosso calibre na cabeça. As medidas refletiram em uma drástica redução do número de “homicídios consumados”, termo criado para designar os episódios em que não foi possível a ressurreição. Por outro lado, os “homicídios reversíveis” cresceram bastante, e as penas passaram a ser calculadas de acordo com a complexidade do processo necessário para a reversão do quadro. Se o número desses homicídios nunca voltou aos padrões anteriores à era das ressurreições, também não comprometeu em nada o futuro, que se desenhava cada vez mais grandioso.

O número reduzido de mortes, em alguns séculos nos obrigou a adotar um controle rigoroso de natalidade. A permissão para nascer passou a custar uma fortuna e estava diretamente ligada ao número de óbitos registrados no ano anterior. Muitos economizaram durante vários séculos para ter um filho, já que burlar a lei era praticamente impossível. Mulheres grávidas precisavam de um atestado que comprovasse a compra da licença, sob pena de serem obrigadas a abortar. Fora isso as maternidades, pediatrias, creches, escolas e todos os produtos que em outras épocas tinham como alvo as crianças passaram a ter uma nova organização calculada em função do número de permissões. Tudo personalizado. Ter um filho às escondidas, além de crime, era condenar a criança a uma vida à margem da sociedade. Mas com a evolução da medicina reprodutiva, já não era preciso ter pressa, e em geral as mulheres deixavam para engravidar depois dos quinhentos anos. O que revolucionou completamente também as estruturas familiares. A imensa maioria dos casamentos feitos ainda na época em que a frase “até que a morte os separe” possuía sentido, não resistiu nem por um século. Os que se mantém juntos até hoje, desde o início da nova era, ainda servem de inspiração aos poetas, mas não passam de algumas centenas espalhados pelo mundo. Se antes as uniões que sobreviveram à juventude e à maturidade, dificilmente terminavam na velhice, hoje, por não existir mais essa velhice como na era passada, o desafio de permanecer junto tornou-se infinito.

Outro aspecto interessante da sociedade de vocês, que se opõe em definição a essa idéia romântica do amor e que contribuiu no início para o controle de natalidade, diz respeito às guerras. O fim da última que se tem notícia ocorreu há alguns milênios, no local onde vocês acreditavam que Jesus teria ressuscitado, e que depois eu soube representar também a terra santa de outras seitas. Acredita-se que esse termo “guerra” utilizado atualmente para dar ênfase à referência de uma discussão ou deixar claro uma antipatia mútua, em algumas sociedades primitivas significava muitas vezes se oferecer em sacrifício por uma forma de agrupamento, chamada por vocês de país, ou por uma religião. Especula-se inclusive sobre a existência dos chamados homens-bomba. Pessoas que amarravam explosivos ao corpo e detonavam a si próprios e ao máximo possível de semelhantes. Há quem duvide, mas eu acredito. Visto que esse mundo para vocês era considerado apenas uma ponte entre algo não muito bem definido e ou céu ou o inferno. Destruir a ponte, garantindo um lugar do lado escolhido, não parece nada irracional. De certa maneira vocês mesmos podem ser considerados também uma ponte. A que nos separa dos animais.

Gostaria de deixar claro que apesar de avaliar a forma como vocês viviam, inclusive pior que a dos animais, que ao menos aproveitavam ao máximo seus instintos, e também de ter afirmado no início sentir nojo de suas sociedades, de maneira alguma deposito sobre vocês a culpa por suas mazelas. O que vocês chamavam de “condição humana” deveria mesmo ser algo terrível. Tão terrível, que poucos eram capazes de lidar com ela, abrindo mão de confortos como a crença em além-mundos. Em nossa sociedade atual, talvez o número de espíritos pouco iluminados permaneça o mesmo. Porém é evidente que criados em um mundo mais salutar, que se nem de longe é perfeito, mais distante ainda está do conhecido por vocês, mesmo os cérebros menos brilhantes puderam alcançar um nível razoável de existência. Se não dominam técnicas avançadas de meditação, nem são capazes de elevar-se às dimensões físicas do corpo, ao menos encontram satisfação em prazeres vulgares. Prazeres que vocês condenavam ou reprimiam nessa recusa aos instintos, e acabaram assim por erguer alto demais, sobre si próprios, um peso que se tornou insustentável. Esse peso vocês chamavam de vida. O que restava era esperar a morte. E mesmo assim temê-la. Mas não vou mais me alongar em pormenores. Acredito já ter explicado com alguma clareza o quanto esse mundo é diferente do que vocês conheceram. O restante deve ser visto e vivido por vocês mesmos, e nenhuma definição encontraria melhor caminho que a experiência. Espero com sinceridade que de alguma forma o que eu escrevi ajude os recém-chegados a encontrar esse caminho e a desfazer as amarras que ainda os prendem ao passado. De todos os valores cultivados por vocês e também ainda por nós, talvez a solidariedade e a empatia, que serviram de base para essa carta, sejam os mais obscuros. Não sei realmente porque eu quis escrever isso. Talvez seja egoísmo e vontade de que mais um pedaço de mim ainda permaneça nesse mundo, que por tantos e tantos anos eu amei.
Atenciosamente,
David Saliner.

A sala de visitas parecia ainda mais vazia do que o de costume e David teve toda a paz necessária para realizar o último trabalho. Pegou a corda com firmeza e atou dois nós para prender junto à cabeça alguns quilos de explosivos. Tirou do bolso o fósforo e coloriu a sala de vermelho. Nas ruas do centro da metrópole o barulho da detonação não chegou a ser ouvido por humanos. Apenas os pássaros que se empoleiravam nas amendoeiras, precipitaram um voo assustado rumo a uma pousada mais distante. É domingo e poucos homens transitam pelos arredores cinzentos e de atmosfera hostil, peculiares aos grandes centros em dias como esses. Na maioria mendigos, que há algum tempo já são incapazes de ouvir e que aos finais de semana se arrastam pelas sombras dos arranha-céus.

12 comentários:

Gustavo Machado disse...

Muito bom! Muito mesmo.

Angel disse...

E eu achando os meus posts longos tsc tsc rs Mas muito bom o texto embora cansativo pra essa hora da manhã, mas tá valendo

Jamile Fernanda disse...

Parabéns pelo texto...
Muito bom!

Jamile Fernanda disse...

Parabéns pelo texto...
Muito bom!

Jamile Fernanda disse...

Parabéns pelo texto...
Muito bom!

Fabíola disse...

Oi. Bom dia. Eu o conheço de algum lugar. Claro! Conheço-o daquela comunidade Novos Escritores Do Brasil. Foi lá que o vi pela primeira vez, sim.

Olha, eu não gosto de me intrometer no trabalho de ninguém. Não sei há quanto tempo você está na blogsfera. Mas o pessoal da blogsfera sempre prefere textos mais curtos. Se você quiser ter bons comentários nesse texto que, por sinal, é bastante interessante, será muito melhor qe você tente se utilizar de alguns efeitos que faça-o parecer mais curto, que cause essa ilusão no leitor. Lá na comunidade as pessoas costumam não verem problemas de o texto ser grande, mas na blogsfera isso é visto como um problema. Bem, é apenas uma dica.

Eu adorei o texto. Já tina lido um texto seu. Não esse. Mas outro e já até havia comentado. Não aqui. Na comunidade.

Bom, se uma experiência como essa proposta pelo DR, Saliner, realmente, desse certo, com certeza, seria o fm de muitas religiões; já que a razão de ser de boa parte delas é, justamente, o pós morte. Todas ou, pelo menos, a maioria se propõem a preparar e orientar o homem para enfrentar o pós morte e uma experiência com essas poria em xeque senão todas, mas a maioria das filosofias religiosas existentes em todo mundo.

Mas eu adorei a sua criatividade nesse texto. Confesso que, no início, não gostei muito do texto. Mas depois fui me empolgando com a ideia e achei-a ótima. Vou continuar lendo outros textos.

Desculpe pelo comentáro tão longo.

Tenha um bom dia!

Fabíola disse...

Oi. Boa tarde.

Olha, eu acho que eu não sou quem você tá pensando, não. Talvez você esteja me confundindo.

Mas deixe-me lembrá-lo quem sou: na NEB, eu tinha um texto chamado Complexo De Puta, o qual gerou algumas críticas e divergências nessa comunidade. Também tive algums divergências lá com o dono e alguns moderadores.

Talvez agora já se lembre de mim com perfeição.

Tchau e, mais uma vez, parabéns pelos textos. Só comento em vários textos quando gosto do blog.

Só uma pergunta: você trabalha como escritor, ou seja, já escreveu para alguma revista, tem algum livro publicado?

Já pensou em participar do prêmio SESC se é que nunca participou?

Tenha um bom dia!

Anônimo disse...

Que texto mais ateu esse seu...

Pedro Lemos disse...

Leo parabéns!
Ótimo texto! Faz-nos refletir sobre a sociedade insana, hipócrita e cheia de vícios na qual vivemos de uma forma deliciosa!
Parabéns mesmo!

Millena disse...

Excelente!Uma reflexão crítica da sociedade.

Fabiane Daz disse...

Muito bom.. Parabens pelo texto

Abraço!!

Lee disse...

Já tinha lido uma vez e interpretado as informações muito diferente.
Parabéns. Apesar de longo, bem construído.