
- Nossa, que orelha enorme tem essa criança!
-O quê?
- É seu filho?
- É!
- Hum, imaginei!
- Eu não acredito no que eu estou ouvindo!
- E eu não acredito no tamanho dessas orelhas! Olha isso!
- Tira a mão do meu filho!
- Desculpa, eu fiquei impressionado – respondeu o homem enquanto afastava o dedo indicador da orelha do garoto. Em seguida passou a bater com as mãos nas próprias orelhas e a simular com a boca o barulho de um helicóptero. O menino começou a chorar.
- Meu amor, não chora, esse homem é doido!
-Dumbo, dumbo, dumbo! – insistiu, equilibrando-se agora na ponta dos pés e fingindo decolar vôo com o movimento das orelhas.
- Você é doente!
- Dumbo, dumbo, dumbo!
- Idiota! Para com isso!
- A senhora já viu o filme do Dumbo?
- Cala a boca!
- É um clássico, a senhora deveria assistir.
- Não me interessa!
- O Dumbo era desprezado por causa das orelhas gigantes, mas o ratinho Timóteo fica amigo dele e faz com que ele perceba que essas orelhas na verdade são um dom. É por causa delas que o Dumbo pode voar. E qual elefante não ia querer voar? É claro que isso é uma metáfora.
- Realmente não me interessa!
- Você não gostaria de voar?
- Não fala com o meu filho!
- É claro também que o significado dessa metáfora nem sempre é verdade. Depende da situação. Um troço desses, às vezes, pode ter mesmo um lado positivo maior que o negativo, se você procurar bem. Outras vezes não. O seu filho não vai voar por causa das orelhas.
- Meu senhor, eu não quero ouvir isso. Não liga meu filho, não tem nada de mais com as suas orelhas. Você é lindo!
- As suas orelhas também são enormes, mas com o cabelo por cima a gente quase nem nota. Só percebe um volume assim do lado e uma pontinha que escapa entre os fios. A maioria das mulheres na sua idade usa o cabelo curto. Eu duvido a senhora cortar.
- Cala essa boca!
- Aposto que os seus amiguinhos implicam com a sua orelha.
- Não fala com o meu filho!
- As crianças são cruéis, isso é clichê. Mas elas nem ligam para as orelhas
- Não, eu quero que você cale essa boca!
- Eu acho importante a senhora saber.
- Saindo daqui eu vou à polícia!
- Se o Dumbo não voasse, ele não conseguiria fazer sexo com as elefantinhas. Elas não enxergariam nele nada mais que uma anomalia, uma diferença em relação ao conceito anterior a elas. E elas querem apenas duas coisas: que as outras elefantinhas invejem o elefante com quem ela acasala e que esse elefante represente um ideal de força, beleza e inteligência, um conceito. É uma questão natural, de preservação da espécie, Darwin, Nietzsche, essas coisas. Mas ao escapar da representação apenas da diferença e se tornar o símbolo da habilidade de voar, a orelha gigante inverteu completamente a sua carga. Toda elefanta passou a querer transar com o Dumbo. Não é interessante?
- Tem uma criança aqui! Eu vou abrir um processo contra você!
- Mas as crianças ainda não sentem tesão, então eu não sei porque elas ligam para isso, não faz muito sentido. O fato é que elas ligam. Acho que elas imitam os adultos. Ou será que isso é uma característica intrínseca ao ser humano? O que a senhora acha?
- Meu senhor, eu acho que você precisa de tratamento.
- O que você acha?
- Já falei para você não falar com o meu filho!
- Tudo bem, vamos falar da senhora. É casada?
- Não interessa!
- Papai mora com você ?
- Não fala com o meu filho!
- Só tentei ser simpático!
- Cala essa boca!
- Calma, não precisa gritar! Todos aqui têm orelhas!
- Desgraçado, filho da puta!
A mulher gritava descontrolada e, dominada pela fúria, partiu para cima do homem, que se defendeu como pôde da seqüência de tapas e joelhadas.
- Não vá pensar que eu estou paquerando a senhora, por favor.
- Desgraçado, filho da puta!
-Calma minha senhora!
- Desgraçado, filho da puta!
-Ai! Você acertou o meu saco!
- Idiota!
- De novo! Ahhh, agora chega!
Um forte empurrão levou a mulher a bater com as costas na parede. Pensou em partir novamente para cima do homem, mas viu que era inútil. Deixou o corpo escorregar e sentou-se aos prantos.
- Olha, a luz voltou! Boa tarde!
- Filho da puta!